terça-feira, 2 de outubro de 2007

Coisas estranhas se Deus existe...

Coisa estranhas acontecem.

Por trás dessa consciência tenho outra, primordial, instintiva, que me define como, apenas, ser humano. Dessa consciência profunda como um poço de profundas águas negras, dos seus monstros terríveis adormecidos pelo meu verniz de pessoa moderna, tentáculos poderosos teimam em vir à tona. Querem a minha garganta. Por isso de vez em quando, quando chove lá fora, quando uma música estranha toca em meus ouvidos, quando meu coração parece rígido como pedra, descubro-me apenas pequena parte desse todo que chamamos mundo e irmão ou parte do único que somos, nós tantos todos. Há de haver um Deus por trás de tudo isso.

O coração parado é apenas tentativa, não fosse musgo o que lhe recobre, pedra, neste frio interno que quase me congela. Sinto as pontadas de gelo da angústia, sinto a paralisia que confirma minha impotência ante tudo que sofremos juntos, nós, no conforto das nossas barricadas, vós, na fome e pobreza das vossas choupanas. Rostos envelhecidos antes da hora, sulcados do vento frio do relento, oferecendo braços a preço de miséria, esvaindo em sangue pela sobrevivência, sou esse tu que implora, quer o fim de cada dia intenso, todos desumanos, injustos. Cadê o Deus por trás dessa tragédia? Tristemente constato que a planta que medra sobre a terra regada pelas minhas lágrimas é a mais fraca; que mais forte é a da terra regada pelo teu suor, e maior ainda será aquela outra, que crescerá onde estarão nossos despojos, de sangue, cartilagem, coisas velhas e ossos. Somos apenas o estrume último desse campo cujo cultivo não compreendemos. Haverá um Deus que nos proteja?

Quando o muco se desfaz e assim o meu muxoxo, não sei se o tentáculo astuto vai-se embora agora por estar satisfeito. Liberta, minha garganta grita apenas um grito rouco, pequeno, pouco. Fechada a tampa do medonho poço, vagamente penso em apagar as fronteiras que dividem o mundo, em acender as velas que iluminam os tolos, mas não tenho receitas para os outros eus que se encastelam acima dos todos nós, bobos mortais, e nos sangram e nos parasitam. Haverá um Deus sobre esse nosso destino? Morrer é a solução que por tão certa não se necessita. Viver é perigoso como um quarto escuro. Com esses tijolos frágeis construo o enorme labirinto onde, por espaçoso, às vezes passeio dentro. Quando não procuro saída, uma saída encontro. Só não encontro a que procuro.

Pensar no cotidiano me resgata definitivamente dessa teia viva. Seria Deus a convencer-me disso? Suspiro e sigo em frente, vou pagar minhas contas, arrumar minhas roupas, tomar minha água limpa. De volta aos sentimentos que me remetem aos principais pecados, tendo afastado de mim definitivamente o cálice, cometo. Tentáculos em minha garganta são cada vez mais distantes, apenas lembranças dessa mente fraca e poderosa, que já se dissociou do todo do qual fazia parte antes. Do enorme ser quase santo quase deus do qual eu era uma pequena parte, sou toda parte do eu minúsculo e enorme em que agora me encontro. Tomo mais uma cerveja pensando em quanta coisa estranha passa pela nossa cabeça, quando achamos que algum Deus existe.

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