domingo, 14 de outubro de 2007

Tempo Redondo


Assim tranqüilo vagava o meu espírito, a ermo, meu corpo deitado na cama mais encostada na parede, bem embaixo da janela, de onde eu via a boca amarela e torta pendurada no céu, lua tão alta. Minhas fantasias caleidoscópicas antecipavam as discussões que eu teria com os clientes e credores acerca de preços, entregas e pagamentos, e as delícias tão mundanas dos botecos e prostíbulos que me esperavam na cidade. Mais dois dias de marcha sob o sol escaldante que antecede as grandes chuvas, montado no burro grande com a carga, e eu só teria que andar ligeiro para não ficar preso ali, pois a qualquer momento tudo se alagaria. A possibilidade de ficar preso naquela casa perdida no meio do mato, naquele boqueirão, na companhia intrigante do estalajadeiro gordo e das suas conversas estranhas me assustava. Recordei-me do seu olho torto imóvel e do seu rosto trêmulo de papadas, e do que me disse sobre a origem do nome daquele lugar. Tumba Inamba, disse... Significava Tempo Redondo no dialeto de antiga tribo local. Na lenda, quem vivesse ali uma grande paixão ficaria preso para sempre naquele vale pelo tempo de um dia, para toda a eternidade.
Minhas pálpebras pesavam como chumbo. Antes de adormecer cheguei a ouvir o galope de vários cavalos e o movimento da porta se abrindo e fechando. Mais hóspedes que chegavam, certamente.
Acordei com a primeira claridade, mas já havia na cama ao lado, sentado e aprumado, como a esperar-me, um velho de barbas brancas e paletó cheio de medalhas.
--- Quem és?
Seu tom era ríspido, a voz um pouco esganiçada. Surpreso, continuei o meu ritual de acordar enquanto pensava na situação.
--- Sou quem já estava hospedado antes aqui. E o senhor, quem é?
Tentei ser ríspido igual, mas só me senti ridículo com a ridícula resposta. O velho empinou o nariz, colocou um brilho de orgulho nos olhos e se apresentou:
--- Sou o Marechal Deodoro, ao seu dispor!
Lá fora, uma voz alegre e jovial começou a chamar:
--- Papai! Papai! Venha!
Ele levantou-se, bateu continência, compenetrado, e marchou em direção à porta. Ainda pude ver, por trás da sua figura empolada, a jovem dona de tão agradável voz, uma moça morena de rosto delicado e longos cabelos amarrados atrás da cabeça, vestida com roupas de montar.
No salão à mesa do desjejum fiquei sabendo que os guias de aluguel que os trouxeram haviam retornado dali, com receio das chuvas, deixando-os à própria mercê para que completassem o trajeto. O velho e a filha iam para a mesma região que eu e logo combinamos fazer juntos o restante da viagem, sob as recomendações cruzadas e entusiásticas do estranho estalajadeiro.
Eles tinham belas montarias, dois cavalos jovens e fogosos, de bom tamanho, que nem pareciam sentir o peso da carga. Tive alguma dificuldade em acompanhá-los no primeiro dia pois o meu burro, embora resistente, não era um animal veloz. Esperaram-me onde combinamos, um curral abandonado, que eu conhecia de outras vezes ter passado por ali.
Embora a moça fosse muito bonita e o velho muito esquisito, a viagem transcorrera normalmente até ali. Acendemos uma fogueira e eu fiz café. Eleonora, esse era o seu nome, tinha um embornal com farofa de carne seca e um pacote com balas de banana. Ofereci-lhes biscoitos. Comemos em silêncio e estendemos as nossas capas no chão, aproveitando bem o resto das paredes e da cobertura para nos proteger do vento e do frio da noite. O velho empertigou-se e bateu continência para mim, antes de deitar-se. Do meu lugar eu via-lhes apenas os vultos estendidos sob as cobertas, por trás da fogueira. Era outra noite escura, o risco da lua apenas marcava o céu.
Acomodei-me sob o cobertor grosso, a cabeça sobre a outra manta enrolada à guisa de travesseiro, e fiquei olhando o céu escuro, matutando sobre a estranha lenda do Tumba Inamba e esperando o sono chegar. O fogo não crepitava mais e apenas o vento assoviava nas madeiras que restaram da casa de curral. Meu espírito estava pronto a vagar novamente, mas deteve-se antes na lembrança da figura atraente de Eleonora. Era, sem dúvida, uma bela mulher. E que natureza forte e que caráter decidido haveria de ter... O velho era louco, não se podia duvidar. Enquanto me admirava com a moça, em pensamento, nem notei o vulto que se aproximara, sorrateiro, e parecia prestes a atacar-me. Sentei-me imediatamente, enquanto o vulto avançava sobre mim estendendo um braço em direção ao meu rosto.
Era ela. Sua mão tocou os meus lábios e então notei que ela apenas tentava pedir silêncio. Estava tão próxima que eu podia notar seus traços, mesmo na escuridão quase absoluta.
Ela se debruçara sobre mim e o seu perfume de fragrância suave se misturava ao nosso cheiro de suor. Senti-me agradavelmente preso sob aquele corpo feminino, ao mesmo tempo em que a excitação me assaltava e fazia-me estremecer. Sua mão agora acariciava-me a face, e estava claro o que ela queria. Por alguns segundos, o inusitado da situação e a presença do velho louco, mesmo adormecido, foram como nuvens escuras passando pela minha mente, mas suas tímidas carícias prometiam tanto que me entreguei sem ressalvas ou preocupações. A moça havia desabotoado o vestido quase completamente e agora seu corpo parecia uma fruta madura saindo da casca, os braços nus, roliços, de pele macia, o colo que se oferecia aos meus lábios, o decote semi-escondendo os seios, mas abrindo-se quando as minhas mãos afastaram os panos aveludados e acariciaram mamilos que eram pequenos círculos mais escuros sobre a pele alva, flores da flor, frutas da fruta, e que destinaram-se como que por divinos desígnios à minha boca seca de sede e desejo, ansiosa por ter e dar o prazer do gosto de sal, do sugar, do lamber... Ela erguia-se aos poucos à minha frente, suas mãos explorando meu corpo sob as cobertas, seu corpo se oferecendo cada vez mais à minha boca, e quando quase em desespero despi-a completamente, enfiamo-nos sob as cobertas e entrelaçamos nossos corpos em um balé silencioso e mágico, línguas, mãos, coxas, seios e tórax, sexos, suores e outros fluidos, devagar, sincronizados, tensos, cada fibra sendo capaz de sentir tudo que havia para sentir, mudos, sussurrantes apenas, não de palavras, mas de gemidos vindos de tão fundo que mais entravam nas nossas almas, e o gozo veio igual para nós dois, aos poucos, à medida em que nossos corpos aceleravam a dança e vibravam juntos, e quando finalmente vergamos involuntariamente nossos músculos e ultrapassamos o fio do orgasmo, pensei que era como se um anjo piedoso resolvesse me mostrar, ao menos dessa vez, a porta aberta extraordinariamente bela do céu...
Ela ainda ofegou sobre meu corpo, agora como uma mole boneca abandonada, durante alguns instantes, levantou-se vagarosamente e arrumou-se, sem me dar palavra ou fazer um gesto sequer. Eu, que esperara o comportamento habitual de toda mulher com quem um homem goza e faz gozar, um aninhar ao peito, uma carícia no rosto, algumas ternas palavras ou apenas o ronronar de satisfação com a cabeça no meu colo, surpreendi-me com aquela secura. Talvez fosse melhor assim. Não me movi do meu lugar até adormecer.
Quando acordei estava, estranhamente, deitado numa cama embaixo da janela aberta por onde entrava a claridade e ao meu lado, na cama vizinha, sentado, empertigado, um velho de barbas brancas e o paletó cheio de medalhas...
--- Quem és?
Seu tom era ríspido, a voz um pouco esganiçada. Surpreso, ouvi minha própria voz ecoar pelo quarto, como se de outra pessoa:
--- Sou quem já estava hospedado antes aqui. E o senhor, quem é?
Havia igual rispidez naquela minha voz, ou apenas um tom ridículo. O velho empinou o nariz, colocou um brilho de orgulho nos olhos e se apresentou:
--- Sou o Marechal Deodoro, ao seu dispor!
Lá fora, uma voz alegre e jovial começava a chamar:
--- Papai! Papai! Venha!

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