segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Lúcidos




Arrepiando o rio que serpenteia em prata o verde vale ao sol do fim do dia, a brisa que arranca meu perfume e seca meus cabelos é o mesmo ente que traz pelas mãos o frio e a mansa escuridão da noite. É o mesmo que me franze os olhos e me acaricia os pelos, e me assusta só um pouco quando os contornos dos montes se esfumam e a solidão apalpa a minha alma. É o que mora no silêncio dos murmúrios das folhagens e dos mugidos. É o do canto misterioso da coruja, do voar dos morcegos em sua perícia cega, dos coaxares e dos piares, do desespero das rãs, dos olhos esbugalhados, dos chapinhares, das cobras e dos lagartos, dos grilos e dos pirilampos, dos mistérios das margens, do peixe que fala "boa noite, meu bem!".
Acocoro e aquieto meus temores. "Boa noite, meu bem!". À bolsinha que se fecha numa croaca, peça antiga de couro cheiroso, é dado o nome de boceta, para meu desespero de criança. Ganhei do meu avô. À palha seca de milho acrescento o seu conteúdo e aperto. Gosto do meu casaco do exército com seus tantos bolsos que eu nunca sei quantos. Aperto e acendo. Aspiro. "Boa noite, meu bem!". A fumaça sobe em espirais azuis contra a bruma azul e é tudo blue em mim também. Blue, blu, bilu. Eu tinha um amigo que se chamava Kalu e não gostava da música do circo que perguntava quantas pregas tinha o seu vestido azul.
O escuro é sólido. Eu sou pálido. O mundo é pérfido. O meu mundo é ínfimo. Eu sou lúcido. Lúcido de ácido. O meu medo é mórbido. O rio é fétido. Pescar é hábito. Delirar é típico. Gosto do seu hálito. Seu corpo é cálido. Sonhar é ótimo. Esperar é mérito. Um vulto, entre as brumas, está ao meu lado. Como uma princesa das trevas, em seus passos mágicos, uma Morgana suave e bela, saída de um lugar qualquer, uma franja do rio, uma loca, um poço profundo, um oco de pau, nunca sei de onde você vem, mas sua boca me diz que você é o peixe que fala "boa noite, meu bem!". A boceta e a palha...
Suas mãos são alvas bailarinas, cincopéias entrelaçadas que enfeitiçam meus olhos e me iludem, e sua boca é uma greta fina quando aperta e fumega, boca de greta e vulcão, e sua fumaça persegue minhas espirais como sonhos em pega-pega nos céus. Acocora e aquieta suas inquietações.
A grama é úmida. Seu olhar é trágico. Meu amor, platônico. Seu desejo, lúbrico. Sou tímido. És rápida. Lúcida. Tépida. Hipnótica víbora, devora-me estático. Gosto de sentir-me um pedaço de corpo jogado sobre a relva molhada e coberto pelos seus humores, gosto de como me possui com fome, gosto de sentir seus dentes e unhas em minhas carnes, gosto de inventar sabores para suas línguas múltiplas, centolíngua milprazeres, gosto quando seu suor e seu sal e seu óleo me recobrem e seu corpo escorrega sobre o meu e o nosso amor é elétrico e quântico e louco, e quando você se desespera de gozo e me asfixia com seu sexo, lúdico.
Somos crápulas, somos angélicos, somos ofídicos, quando serpenteamos mágicos nessa margem lírica desse recôndito regato nesta noite mística prenhe de anjos lúcidos. Lúcidos de ácidos. Somos o que inventamos, somos, do outro, o ópio. Somos sonhos luxúricos. Somos eróticos.
O sol é delicado quando toca a bruma mágica e a transforma em névoa. O rio serpente brilha em outra ótica. A brisa é fresca. Matutina. O meu casaco úmido tem tantos bolsos que nem sei quantos. Estou desesperadamente lúcido. Nu, me banho na serpente gélida. Existem indícios por toda a volta. Não foi um delírio. Indícios no meu corpo. Na minha alma. Não sou um caso clássico. O meu amor é que é tóxico.

2 comentários:

CRF disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Rafael disse...

Gostei muito desse. muito interessante.