quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Jogo de Bola


Jogo de Bola

Gosto de futebol. Do jogo e da lambança. Se ando pela rua, desocupado, e de repente há uma pelada num terreno baldio qualquer, paro e assisto. Sou muitas vezes, sozinho, toda a platéia. Vício. Nunca, porém, vi uma partida num ângulo tão inusitado: de cima, como se estivesse num balão flutuante. E é bom de se ver, uma partida daqui de cima. O gramado verdinho, as árvores em volta, as linhas do muro, o telhado ora vermelho ora preto de sujo, as paredes brancas e as colunas de madeira, cenário tão estranho e tão conhecido, minha casa querida, tão nova, tão diferente.

Nesse momento jogam uma partida no meu gramado. São sete contra sete, como catorze bestas do apocalipse. Um time só de calções. O outro de camisas brancas sociais de mangas compridas. Quem pede, recebe, quem se desloca tem preferência, antiga e eterna filosofia do futebol. Tenho a cara redonda como uma bola. A bola, correndo no meu gramado, olhando-se bem, parece comigo...

A madrugada me encontrou acordado. Como em todos os dias, eu vigiava e esperava. Olhei pela janela e vi aquelas pessoas sentadas no meu passeio. Eram apenas oito. Pensei em pegar o meu revólver e ameaçá-los, mas não o fiz. Apenas olhei para aqueles homens miseráveis, sentados em silêncio na minha calçada. Reconheci um ex-empregado, não me lembrei o nome. Outros chegaram, esparsos, discretos, silenciosos, e sentaram-se também. Como se chegassem para o trabalho e aguardassem ali a abertura dos portões, numa fábrica qualquer. Neo foi dos últimos a chegar. O dia clareava depressa, eles esperavam em silêncio. Alguém comandaria tudo. Neo, talvez... Chegaram mais três, esses juntos. Todos se levantaram, agruparam-se. E então vieram em direção ao meu portão.

Eu tinha orgulho daquela mansão, trabalhei duro... Corri e abri o portão, antes que o derrubassem. Não queria máculas. Fizeram um semi-círculo à minha frente, um tanto surpresos. Enfrentei-os fitando-os nos olhos, um a um. Alguns tremiam os lábios mas nenhum baixou as vistas. Nem Neo, que me encarou com ar feroz. Recuei, dando-lhes espaço mas tomando a entrada da casa. Cercaram-me rapidamente e então senti um golpe no pescoço. Apaguei, por um instante.

Há um pequeno intervalo, entre a morte e as primeiras luzes. Nesse intervalo, sonhamos com um útero. Então de repente eu vi, como se estivesse num balão flutuando a alguns metros de altura, mas com toda a nitidez, meu corpo decapitado em frente à entrada da varanda, onde fui atingido pelo facão de Neo. Havia um entra-e-sai. Ligaram o meu equipamento de som, nas doze versões da Ave Maria. Entravam e saiam com garrafas. Beberam uísque, vodka, cachaça, vinhos... Alguém apontou para o campo gramado com as traves de futebol. Não havia bola. Apontaram, então, o canteiro onde estava o meu corpo decapitado. Alguém se abaixou e apanhou a minha cabeça. Eu ia ser a bola. Entraram na casa para apanhar os uniformes. Um dos times usaria camisas. Um branco magro chegou com uma pilha de cabides, com as minhas camisas sociais. Escolheram as brancas para os jogadores de linha e o goleiro preferiu uma cor de goiaba.

Minha cabeça foi então colocada no centro do gramado, cada time arrumou-se do seu lado, os sem camisa com suas bermudas escuras e sujas, todos magros de pernas finas e joelhos proeminentes, pareciam fracos demais para aquela peleja. Do outro lado, orgulhosos em suas camisas de mangas compridas cobrindo os calções, alvíssimas, o time que parecia, por isso, mais preparado. Não havia juiz. Eram sete de cada lado, as sete bestas...

Neo era o centro-avante do time de camisas. Parecendo mais comprido ainda com aquela camisa enorme, postou-se no ataque e ficou esperando que a "bola" lhe chegasse. O jogo começara embolado no meio-de-campo, pois a minha cabeça não era uma excelente bola, pois não quicava quando tocava o chão, pois pesava demais. Nos primeiros chutes o sangue espirrara e manchara as camisas, e então os jogadores não queriam mais chutar de qualquer jeito. Tentavam acertar no meu cocoruto, para que o sangue espirrasse para a frente. Um enfiou o pé por debaixo da minha orelha e levantou a bola para o alto.

Luto contra essa força que me carrega cada vez mais para cima, parece em vão, até que eu simplesmente penso "Poxa! Mas eu gosto tanto de futebol!". Imediatamente, a força deixa que eu baixe novamente até ver com nitidez o que acontece lá embaixo. Ver o futebol ainda pode, mas nada de querer voltar à vida...

A minha cabeça, lembram-se, foi jogada para o alto. Todos os jogadores acompanham a trajetória, há um empurra-empurra na área do time de camisas, que está sendo atacado e onde minha cabeça deve cair. Um branco de ombros largos e camisa impecável, zagueiro, abre os braços e afasta quem está por perto. A cabeça desce, girando, espirrando sangue para todos os lados, mas ele se posiciona dobrando o corpo para trás, mata a "bola" no peito e com um toque de classe dá um balãozinho na direção do ataque. Grande jogada! Que categoria! A camisa sai-lhe ensopada de sangue, mas seu sorriso indica que ele próprio gostou do que fez. A minha cabeça viaja, suave, na direção de Neo, que continua no ataque, de costas para o gol dos sem camisa. Vem na altura certa. Neo não deu um único chute no jogo, ainda. Joga também o corpo, para trás e para cima, deita-se no ar e quando a "bola" chega na altura certa, dá a pedalada. Pega na veia. Uma autêntica bicicleta, jogada de craque. O sangue espirra e a cabeça, impulsionada pela força do chute, passa como um raio entre o goleiro e a trave. Golaço!
Todos correm para abraçar Neo, mas ele se livra logo da comemoração e corre para dentro do gol adversário, para pegar a bola e a colocar debaixo do braço, decretando o fim da partida e ficando com a minha cabeça como troféu.

Suspiro de prazer com o que acabo de assistir. Minha alma sobe novamente, então, leve e satisfeita. Foi um belo lance. Depois de bem lavada e posta para secar e curtir com sal, espetada sobre uma pequena estaca e posta num pedestal, a minha cabeça irá enfeitar a galeria de troféus de Neo, com uma pequena e singela inscrição: "Bola do Jogo Em Que Fiz um Gol de Bicicleta".

3 comentários:

Anônimo disse...

Excelente texto, Paulo. O ritual do jogo, versus o ritual da morte; já que o jogo é uma evasão da realidade, um parênteses, por assim dizer, a metáfora ficou perfeita.`Percebe-se a presença, no seu conto, da dimensão do pensamento primitivo (indispensável à boa literatura); o futebol é um ritual, e toda decisão a qual se chega através de um ritual, é divina. Seu conto retrata esse aspecto muito bem, principalmente no clímax final: a cabeça se transforma em troféu.
Parabéns.

Pirra à toa.. disse...

Grato, Paella, sempre aprendo com seus comentários. Beijo.

Anônimo disse...

Ainda faço um comentário inteligente sobre este texto!!
Beijo,

Sara