domingo, 28 de outubro de 2007

Internauta

Estou mais velho ainda, agora. Por milagre meu cérebro ainda funciona. Sou considerado doido, esclerosado, rabugento, chamam-me às vezes de velho senil ou tarado sem-vergonha, não ligo mais. Acontece com todo mundo. Depois desta idade perdi a vergonha, a paciência, o senso...
Meu corpo foi deixando de funcionar aos pouquinhos. Não que eu tenha algum problema grave, apenas estou gasto demais. Minhas pernas tem as juntas endurecidas, os músculos quebradiços, os ossos são como pedacinhos de bambu, ocos e frágeis, mal se mantêm inteiros por algum milagre qualquer. Meu tórax, outrora tão firme, hoje só uma rala cobertura de pele seca e tecidos esgarçados recobrindo ossos frágeis, segurando a custo as minhas entranhas. Meus braços e mãos, já os controlei melhor. Um tremor renitente me incomoda.
Minha face encovada, cheia de rugas e pelos, meus olhos afundados e meu nariz escandalosamente crescido agridem-me no espelho que encaro com altivez e desafio todas as manhãs, quando passo vagarosa e cuidadosamente a escova pelos meus ralos cabelos. Meus dentes há muito se foram. A dentadura postiça, excrescência, ri de mim, puro escárnio, num copo barato ao lado da pia.
Todos os meus já se foram, fiquei só. Não preciso trabalhar, tenho dinheiro que basta até o meu fim. Meus dias são longos e tediosos. Contratei uma moça magra e cheirosa para ser minha empregada. Ela ficou dois dias, saiu porque eu queria que ela me desse banho. Medo de que? Não consigo mais ter ereção. Minha libido continua intacta, num desses erros da natureza, mas eu não consigo mais. Contratei então uma velha gorda de olhos miúdos e desconfiados, que ficou uma semana. Saiu porque eu não queria que ela me desse banho. Contratei por fim Joana, minha princesa de ébano, a razão para minha longeva.
Joana cuida de mim como se eu fosse um animalzinho seu, querido e inofensivo. Ela é uma mulher prática e atrevida, decidida, dessas que sabem o que querem e pegam com força, e assim me tomou para cuidar. Eu deixei e gostei. Joana é também uma negra relaxada, desbocada, bonita e fogosa, vivida nas ruas, sabida e amorosa. Perfeita! Conversa comigo para rir. Arruma a casa e faz a comida, cuida de minhas roupas e me dá banho como ninguém. E, desta forma, me motiva a resistir.
Tomar banho com Joana é uma dádiva. Minha banheira de louça encardida é grande o bastante para nós dois. Às vezes ela não entra, mas mesmo assim sempre é bom. Eu gosto quando ela começa a tirar minha roupa ainda na varanda. Tenho que parar no meio do caminho, as calças enroscadas nas pernas, uma risadaiada atrás de mim. Ela se abaixa e me livra das calças, enquanto ri de minha bunda murcha como um maracujá. Com minhas roupas sobre os ombros, empurra-me, nu, até a banheira espumosa e quentinha, onde me enfia até eu ficar só com a cabeça de fora. Aí, se ela estiver com vontade, tira o roupa e entra também, só de calcinha, e me deixa olhar seu corpo firme, seus seios pequenos, suas coxas musculosas... Às vezes ela fica imóvel, bem pertinho, olhando-me com um sorriso idiota no rosto, enquanto eu passo meus dedos trêmulos pelos seus seios, arrepiando os biquinhos, desço pela barriga, o seu sorriso aumenta, quando minha mão hesitante desaparece na água espumada ela dá aquela risada escandalosa e levanta-se, me chamando de velho safado. Uma delícia!
Joana estudou numa escola pública modelo, dessas que têm até computador. Espertíssima, dedicou-se a aprender informática e logo sabia como entrar na internet. Aprendeu também outras coisas, até ser expulsa de lá. Agora dedica-se a me ensinar.
Convenceu-me a comprar um equipamento, chamou um técnico para instalar, ensinou-me os rudimentos da operação e mostrou-me como entrar nas salas de bate-papo. Disse que era contra a solidão. Mudou a minha vida, a danada.
Meu apartamento é antigo, tem um varandão na frente, fica no segundo andar. A sala, enorme, tem um velho sofá e duas poltronas ensebadas, uma mesa grande com seis cadeiras de palhinha amarelada, um armário baixo e pesado onde fica a TV sem controle remoto, e um canto vago onde coube como uma luva a mesa do computador. Os três quartos e o grande banheiro estão dispostos ao longo do corredor, que desemboca numa cozinha de azulejos antigos e gastos. Uma área de serviço e dois quartos pequenos completam minha morada. Joana dorme num dos três quartos principais, ao lado do meu. Há três anos não saio daqui.
Ela queria me ensinar mais coisas, mas depois das salas de bate-papo eu não quis mais aprender nada. Nossa rotina é definida. Acordo às onze. Tomo um pouco de café, acendo um cigarro, vou para a varanda. Joana arruma meu quarto. A casa ela já arrumou, não sei a que horas ela acorda. Dou uma olhada nos jornais, cochilo, ela me acorda. É o banho. No quarto de Joana, o toca-discos toca um som qualquer, sempre bem alto e animado. E ela ri e dança pela casa. Um dia ela vai me afogar, eu sei. Por enquanto, contento-me em jogar água morna no seu corpo estático e vê-la escorrer, deixando um rastro brilhoso pelo seu colo negro. Pego a água com a mão trêmula, um pouco só. Ela chega bem perto, sorri. Às vezes eu tento tocá-la. Ela deixa ou não deixa, eu não me importo. Ela me chama de velho safado, eu gosto. Quando termina o banho, ela abre o ralo, a água escorre, um friozinho chega devagar, ela me esfrega com a toalha quente do sol. Eu não falo nada, desde que a minha mulher morreu. Só escrevo e faço gestos, mas ela me entende.
O almoço é servido na mesa grande, eu como um pouquinho, ela devora tudo com gula e prazer. Ela vai me envenenar um dia, eu sei. Por enquanto eu saboreio a verdura gelada com alface americana e o molho de alho e azeite. Durmo à tarde, ela sabe onde está o meu dinheiro, vai fazer as compras. Ela vai me roubar um dia, eu sei.
Às vezes eu leio um livro, as vezes fico na cama pensando e tentando falar. Nunca consegui mais que poucos sons dissociados da minha vontade. Não sei o que aconteceu comigo. Fumo meu terceiro cigarro, ela liga o computador, sentamos nós dois, lado a lado. Hoje é terça-feira, meu dia de “Pescador”.
Escolho uma sala de pessoas de 40 a 50 anos. “Pescador” tem 42, é alto e moreno, tem muito cabelo, muito parecido com João Vicente, um primo antigo, de quem tenho fotos, que mando para quem quiser saber como sou. “Pescador” tem veia poética e histórias do mar. Sedutor, insinua e acossa até a adversária se dobrar. Raramente passa-se uma noite sem que eu anote mais uma conquista para o “Pescador”. Mas ele não é meu favorito. A arte de seduzir já me cansa, é tão fácil isso de convencer uma mulher... Escrevo o que elas querem ler, acabou. Gosto mais do “Velhofeio”, parece-se mais comigo. Este é o dos sábados, agressivo e elegante, passa-se por grande mentiroso, ninguém quer acreditar. A foto é do Gene Hackman, Joana modificou no computador. Nas salas de mais de 50 anos, “Velhofeio” faz conquistas e citações. Tenho um apelido para cada dia, cada dia um personagem diferente. Joana fica comigo até ter certeza que encarnei certinho. Aí, vai namorar.
Seu namorado é um cabo ou sargento, não me importo, lotado num quartel perto daqui. Não sei o que Joana faz na rua, mas volta às onze, dizendo que namorou. Um dia ela chegará com seu namorado alto e forte, os dois me matarão e roubarão tudo que tenho. Eu sei. Não me importo.
Ela gosta que eu vista uma roupa para cada dia. Na terça, um short marrom e um colete de pesca cheio de bolsos vazios. No sábado, um robe ridículo, de seda, e uma touca de Papai Noel. Eu visto porque ela gosta. Não me importo. Ela ri quando me vê todo fantasiado, bem empertigado defronte da tela, com as mãos no teclado. Às vezes vejo ternura em seus olhos quando ela me beija os ralos cabelos e murmura alguma coisa que penso ser para o meu bem. Eu sei que Joana será a minha perdição. Mas não me importo...
Hoje vou cometer uma peraltice: mandar para todos os meus contatos na internet esse texto. Como uma confissão. Assinarei com os apelidos que uso, todos os sete. Amanhã, algumas pessoas vão responder. Ninguém vai acreditar em mim. Não me importo. Joana vai rir...

Um comentário:

Anônimo disse...

Esse texto me lembrou de Memórias de Minhas Putas Tristes do Gabo. Talvez essa seja uma boa forma de se enfrentar a velhice.