terça-feira, 30 de outubro de 2007

Deus me perdoe se não for...

Tenho um projeto chamado O Tratado das Bucetas. Nome provisório. Sei que buceta agride a suscetibilidade de muita gente. Poderia ser O Tratado das Vaginas, mas ganharia aspecto muito técnico. Se fosse O Tratado das Xoxotas não seria levado a sério. A Coisa, com todo respeito, tem muitos nomes, mas nenhum se eleva a esse nível: buceta, vagina e xoxota. Por isso as minhas dúvidas sobre o título de tal tratado. Saiba-se aliás, desde já, que gosto muito de tratar deste assunto. E que aceito sugestões. Enquanto isso recebi um email, de procedência mais que nobre, trazendo um poema atribuído a Mario Quintana. Reproduzo-o como recebi. E Deus que me perdoe se não for ele o autor...

CRIAÇÃO DA XOXOTA

Sete bons homens de fino saber
Criaram a xoxota, como pode se ver:

Chegando na frente, veio um açougueiro.
Com faca afiada deu talho certeiro

Um bom marceneiro, com dedicação.
Fez furo no centro com malho e formão

Em terceiro o alfaiate, capaz e moderno.
Forrou com veludo o lado interno

Um bom caçador, chegando na hora.
Forrou com raposa, a parte de fora.

Em quinto chegou, sagaz pescador.
Esfregando um peixe, deu-lhe o odor.

Em sexto, o bom padre da igreja daqui.
Benzeu-a dizendo: 'É só pra xixi!'.

Por fim o marujo, zarolho e perneta.
Chupou-a, fodeu-a e chamou-a... buceta!

Mario Quintana

domingo, 28 de outubro de 2007

Bode ou Urubu?

Zai é baixinho, tem mais de sessenta anos, é conservador e sistemático, prefere o ar sério e o semblante fechado. Nei, seu filho, tem trinta e poucos e é muito engraçado. Poucas pessoas têm a sua graça para contar histórias onde ele ou o pai são, invariavelmente, os principais personagens. Em todos os casos, eles sempre se dão mal...

Tenho a sorte de conhecê-los e encontrá-los com alguma frequência. Hoje Nei almoçou comigo. Estava de ressaca e falou pouco, preferi deixá-lo dormir um pouco na rede da varanda. Mas relembramos alguns casos mais leves, do velho Zai. Zai é conhecido também pela teimosia. Não se conhece ocasião em que ele tenha mudado de opinião, mesmo ante as maiores evidências...

Zai tem um caminhão Ford velho, branco, reformado, tratado com todo carinho. Mais por gosto que por necessidade, de vez em quando pega algum frete. Naquele dia saiu cedo, na companhia do compadre Jonas, velho companheiro de jornadas e discussões. A madrugada era ainda pouco luminosa e o caminhão já pegava a estrada de Massaranduba, onde carregaria de mourões. Num trecho da estrada, reto, avistaram lá adiante algo no meio da estrada. No início era apenas uma mancha preta. Jonas arriscou: É um urubu! Zai apertou os olhos, firmou as vistas, retrucou: Não é urubu. É um bode! Foi a vez de Jonas botar atenção na coisa, da qual o caminhão se aproximava lentamente. Os dois, míopes, não conseguiam enxergar com nitidez lá adiante. Jonas: Ô, Compadre, não está vendo que é um urubu? Zai já se aporrinhava: Que urubu o que, não enxerga não, é? Não está vendo que é um bode?

O caminhão avançava e os dois teimavam: É urubu! É bode! É urubu! É bode! É urubu, seu idiota! É bode, seu véio cego! Até que o bicho lá na frente abriu as asas e voou.

Não falei que era um urubu? Não falei? Olhá lá, voou!

Rubro de raiva e mastigando as palavras, Zai retrucou: Que voou eu vi, não sou cego. Mas ainda aposto que era um bode!

Silêncio até o fim da viagem, que Jonas conhecia o compadre e sabia que era melhor não tripudiar.
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Mi disse...
Mais uma vez me engano sobre o amor. Pensei não ser possível fotografá-lo, apenas exprimí-lo já que é um sentimento. Mas.. ei-lo: a fusão entre o belo e a dor representada num espinho em flor.

Internauta

Estou mais velho ainda, agora. Por milagre meu cérebro ainda funciona. Sou considerado doido, esclerosado, rabugento, chamam-me às vezes de velho senil ou tarado sem-vergonha, não ligo mais. Acontece com todo mundo. Depois desta idade perdi a vergonha, a paciência, o senso...
Meu corpo foi deixando de funcionar aos pouquinhos. Não que eu tenha algum problema grave, apenas estou gasto demais. Minhas pernas tem as juntas endurecidas, os músculos quebradiços, os ossos são como pedacinhos de bambu, ocos e frágeis, mal se mantêm inteiros por algum milagre qualquer. Meu tórax, outrora tão firme, hoje só uma rala cobertura de pele seca e tecidos esgarçados recobrindo ossos frágeis, segurando a custo as minhas entranhas. Meus braços e mãos, já os controlei melhor. Um tremor renitente me incomoda.
Minha face encovada, cheia de rugas e pelos, meus olhos afundados e meu nariz escandalosamente crescido agridem-me no espelho que encaro com altivez e desafio todas as manhãs, quando passo vagarosa e cuidadosamente a escova pelos meus ralos cabelos. Meus dentes há muito se foram. A dentadura postiça, excrescência, ri de mim, puro escárnio, num copo barato ao lado da pia.
Todos os meus já se foram, fiquei só. Não preciso trabalhar, tenho dinheiro que basta até o meu fim. Meus dias são longos e tediosos. Contratei uma moça magra e cheirosa para ser minha empregada. Ela ficou dois dias, saiu porque eu queria que ela me desse banho. Medo de que? Não consigo mais ter ereção. Minha libido continua intacta, num desses erros da natureza, mas eu não consigo mais. Contratei então uma velha gorda de olhos miúdos e desconfiados, que ficou uma semana. Saiu porque eu não queria que ela me desse banho. Contratei por fim Joana, minha princesa de ébano, a razão para minha longeva.
Joana cuida de mim como se eu fosse um animalzinho seu, querido e inofensivo. Ela é uma mulher prática e atrevida, decidida, dessas que sabem o que querem e pegam com força, e assim me tomou para cuidar. Eu deixei e gostei. Joana é também uma negra relaxada, desbocada, bonita e fogosa, vivida nas ruas, sabida e amorosa. Perfeita! Conversa comigo para rir. Arruma a casa e faz a comida, cuida de minhas roupas e me dá banho como ninguém. E, desta forma, me motiva a resistir.
Tomar banho com Joana é uma dádiva. Minha banheira de louça encardida é grande o bastante para nós dois. Às vezes ela não entra, mas mesmo assim sempre é bom. Eu gosto quando ela começa a tirar minha roupa ainda na varanda. Tenho que parar no meio do caminho, as calças enroscadas nas pernas, uma risadaiada atrás de mim. Ela se abaixa e me livra das calças, enquanto ri de minha bunda murcha como um maracujá. Com minhas roupas sobre os ombros, empurra-me, nu, até a banheira espumosa e quentinha, onde me enfia até eu ficar só com a cabeça de fora. Aí, se ela estiver com vontade, tira o roupa e entra também, só de calcinha, e me deixa olhar seu corpo firme, seus seios pequenos, suas coxas musculosas... Às vezes ela fica imóvel, bem pertinho, olhando-me com um sorriso idiota no rosto, enquanto eu passo meus dedos trêmulos pelos seus seios, arrepiando os biquinhos, desço pela barriga, o seu sorriso aumenta, quando minha mão hesitante desaparece na água espumada ela dá aquela risada escandalosa e levanta-se, me chamando de velho safado. Uma delícia!
Joana estudou numa escola pública modelo, dessas que têm até computador. Espertíssima, dedicou-se a aprender informática e logo sabia como entrar na internet. Aprendeu também outras coisas, até ser expulsa de lá. Agora dedica-se a me ensinar.
Convenceu-me a comprar um equipamento, chamou um técnico para instalar, ensinou-me os rudimentos da operação e mostrou-me como entrar nas salas de bate-papo. Disse que era contra a solidão. Mudou a minha vida, a danada.
Meu apartamento é antigo, tem um varandão na frente, fica no segundo andar. A sala, enorme, tem um velho sofá e duas poltronas ensebadas, uma mesa grande com seis cadeiras de palhinha amarelada, um armário baixo e pesado onde fica a TV sem controle remoto, e um canto vago onde coube como uma luva a mesa do computador. Os três quartos e o grande banheiro estão dispostos ao longo do corredor, que desemboca numa cozinha de azulejos antigos e gastos. Uma área de serviço e dois quartos pequenos completam minha morada. Joana dorme num dos três quartos principais, ao lado do meu. Há três anos não saio daqui.
Ela queria me ensinar mais coisas, mas depois das salas de bate-papo eu não quis mais aprender nada. Nossa rotina é definida. Acordo às onze. Tomo um pouco de café, acendo um cigarro, vou para a varanda. Joana arruma meu quarto. A casa ela já arrumou, não sei a que horas ela acorda. Dou uma olhada nos jornais, cochilo, ela me acorda. É o banho. No quarto de Joana, o toca-discos toca um som qualquer, sempre bem alto e animado. E ela ri e dança pela casa. Um dia ela vai me afogar, eu sei. Por enquanto, contento-me em jogar água morna no seu corpo estático e vê-la escorrer, deixando um rastro brilhoso pelo seu colo negro. Pego a água com a mão trêmula, um pouco só. Ela chega bem perto, sorri. Às vezes eu tento tocá-la. Ela deixa ou não deixa, eu não me importo. Ela me chama de velho safado, eu gosto. Quando termina o banho, ela abre o ralo, a água escorre, um friozinho chega devagar, ela me esfrega com a toalha quente do sol. Eu não falo nada, desde que a minha mulher morreu. Só escrevo e faço gestos, mas ela me entende.
O almoço é servido na mesa grande, eu como um pouquinho, ela devora tudo com gula e prazer. Ela vai me envenenar um dia, eu sei. Por enquanto eu saboreio a verdura gelada com alface americana e o molho de alho e azeite. Durmo à tarde, ela sabe onde está o meu dinheiro, vai fazer as compras. Ela vai me roubar um dia, eu sei.
Às vezes eu leio um livro, as vezes fico na cama pensando e tentando falar. Nunca consegui mais que poucos sons dissociados da minha vontade. Não sei o que aconteceu comigo. Fumo meu terceiro cigarro, ela liga o computador, sentamos nós dois, lado a lado. Hoje é terça-feira, meu dia de “Pescador”.
Escolho uma sala de pessoas de 40 a 50 anos. “Pescador” tem 42, é alto e moreno, tem muito cabelo, muito parecido com João Vicente, um primo antigo, de quem tenho fotos, que mando para quem quiser saber como sou. “Pescador” tem veia poética e histórias do mar. Sedutor, insinua e acossa até a adversária se dobrar. Raramente passa-se uma noite sem que eu anote mais uma conquista para o “Pescador”. Mas ele não é meu favorito. A arte de seduzir já me cansa, é tão fácil isso de convencer uma mulher... Escrevo o que elas querem ler, acabou. Gosto mais do “Velhofeio”, parece-se mais comigo. Este é o dos sábados, agressivo e elegante, passa-se por grande mentiroso, ninguém quer acreditar. A foto é do Gene Hackman, Joana modificou no computador. Nas salas de mais de 50 anos, “Velhofeio” faz conquistas e citações. Tenho um apelido para cada dia, cada dia um personagem diferente. Joana fica comigo até ter certeza que encarnei certinho. Aí, vai namorar.
Seu namorado é um cabo ou sargento, não me importo, lotado num quartel perto daqui. Não sei o que Joana faz na rua, mas volta às onze, dizendo que namorou. Um dia ela chegará com seu namorado alto e forte, os dois me matarão e roubarão tudo que tenho. Eu sei. Não me importo.
Ela gosta que eu vista uma roupa para cada dia. Na terça, um short marrom e um colete de pesca cheio de bolsos vazios. No sábado, um robe ridículo, de seda, e uma touca de Papai Noel. Eu visto porque ela gosta. Não me importo. Ela ri quando me vê todo fantasiado, bem empertigado defronte da tela, com as mãos no teclado. Às vezes vejo ternura em seus olhos quando ela me beija os ralos cabelos e murmura alguma coisa que penso ser para o meu bem. Eu sei que Joana será a minha perdição. Mas não me importo...
Hoje vou cometer uma peraltice: mandar para todos os meus contatos na internet esse texto. Como uma confissão. Assinarei com os apelidos que uso, todos os sete. Amanhã, algumas pessoas vão responder. Ninguém vai acreditar em mim. Não me importo. Joana vai rir...

sábado, 27 de outubro de 2007

Veneráveis Joelhos

Estamos em Agosto 30th, 2006

Fazia frio quando acordei. Sonhei com uma moça que mora longe, num lugar bem distante. Ela chegou sem barulho, no meu sonho, como se isso me importasse. Acariciou-me a nuca e a face, beijou-me a boca. Ofereceu seu pescoço e seu colo aos meus beijos ardentes. Ela é doce e cheira levemente a jasmim com limão, ou algo assim, bem refrescante. Gosto de beijar a sua barriga. Ela se encolhe e sorri, de cócegas. Tem os joelhos mais lindos que eu já vi. Excitado, no sonho procuro seu sexo. Quando as suas pernas prendem a minha cabeça e ela me empurra para dentro de si, sinto-me, afinal, no lugar mais do que perfeito. Então acordo, a contragosto.

Acordar neste frio, e só, não tem nada de interessante. No mundo dos meus sonhos eu era feliz. Quero essa mulher de veneráveis joelhos...

Hoje irei procurá-la nas tantas moças que encontrarei, na morena cheirando a loção de cabelo na fila do banco, na loirinha de barriga de fora andando na rua, na garçonete de olhos de mel servindo café na lanchonete, nas meninas sensuais saindo da escola ou na gentil senhorita risonha, passeando na praça, quem sabe na jovem senhora empurrando um carrinho do supermercado?

De dentro do meu agasalho, caminhando pelas calçadas, espanto-me com tanto movimento. As pessoas vivem absurdamente alheias aos meus sonhos! Com uma satisfação estranha, de ser o único que sonha com tais joelhos, sigo observando. Pode ser essa vizinha que se derrama pela janela em volúpia, seios e sorrisos? Ou a menina de calças apertadas, que não consigo saber se com ou sem calcinha? Ou a moça que dirige compenetrada, fazendo pose para a patuléia? Talvez eu ache o que procuro, em alguma delas…

Mas se acontecer será coisa falsa. Nenhuma terá, porcerto, essse sabor de hortelã com abacaxi que sempre sonho em seus lábios, nem os joelhoas mais lindos que já vi neste mundo. Sou feliz, no meu mundo de sonhos...

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

TPM é Fácil

Mulher é bicho de lua. Estamos na quadra da cheia e todo cuidado é pouco. Falamos da TPM.

TPM é foda. Dura, em média, dez dias. Com boa vontade, podemos esperar pelo menos uma semana por mês nesse estado. De cada dez mulheres em plena atividade reprodutiva, ciclando, estima-se que sete tenham TPM. (Vivo procurando aquelas outras três, sem sucesso...). Sugiro que antigamente, livre da influência da luz artificial, das comidas enlatadas, dos defensivos agrícolas, dos conservantes, do estresse da vida moderna, as mulheres menstruavam, todas, na lua cheia. O que significa que setenta por cento delas estavam na TPM na mesma semana. Credo! Por sorte, a população mundial era pequena e não havia tantas mulheres assim, mas imagino o clima nos conventos, nas coxias dos palácios, nos salões de beleza, não dá nem para pensar. Por isso os homens viviam fora de casa, nas guerras. O risco era menor.

Na verdade não dá para saber se daquela forma era melhor ou pior do que atualmente. Se hoje as mulheres menstruam em qualquer lua e portanto ficam na TPM em qualquer semana, imagine só numa casa com muitas mulheres! Sempre haverá alguma na TPM a qualquer momento e então coitados dos homens da casa, sem um dia sequer de sossêgo... Por isso se pesca tanto, hoje em dia.

Também se diz, talvez com alguma razão, que a TPM se manifesta de verdade somente nas mulheres casadas. Seria, portanto, uma Tensão Pós Matrimonial. Afinal, pensariam elas, para que ficar na TPM se não houver um homem por perto para se aporrinhar?

Dizem ainda que para se conhecer uma mulher deve-se avaliá-la em plena TPM, pois é quando ela está fora de si e pode-se vê-la inteira. Acho isso uma maldade. De qualquer forma, poucos homens teriam coragem de chegar tão perto a esse ponto quando elas estão nesta situação.

O pior da TPM é que, apesar de mensal, infalível e característica ela sempre parece pegar todo mundo de surpresa. É um mistério, isso. Fosse mais previsível bastava fazer uns adesivos e colar nas suas testas, “Mantenha Distância, Mulher na TPM”. O problema é que, na TPM, elas não concordariam com isso... Enfim! Se nem os americanos resolveram, não somos nós, né?

Tive irmã e primas, e vivi casado por uns trinta anos, mas nunca consegui identificar essa coisa com a necessária antecedência para me safar dos seus efeitos. Tentei várias técnicas. Anotar na agenda não funcionou, eu esquecia de consultar. Reparar no “Bom Dia” idem, pois elas demoram uns dez minutos depois que acordam, para se lembrar e incorporar. Reparar nos gestos não adiantava, pois quando a gente descobre a TPM já está instalada em todo seu vigor.

Mas eu tenho uma dica, de uma técnica que desenvolvi. A única maneira, para o homem, de administrar razoavelmente essa situação e tentar se livrar dos efeitos terríveis da TPM é observar a mulher exatamente no seu comportamento contrário. Nenhuma mulher suporta uma semana inteira numa boa, a não ser nas vésperas das tempestades. Então, caro amigo, observe. Se sua companheira está serena, amorosa, compreensiva, sensata e tolerante, parecendo quase um homem, fique alerta. Se isso acontecer por um dia ou dois, está tudo normal. Se perdurar por uma semana, aperte o botão de alerta máximo! Arrume a tralha, mande abastecer a lancha, compre a cerveja. A semana seguinte é da TPM. Pá, pum, créu! Não tem erro...

Nem vou contar sobre um colega meu que, casado e com duas filhas, ainda se meteu a comprar um salão de beleza e tem hoje cinqüenta mulheres trabalhando lá com ele...

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Poetrix

constatações didáticas

as minhas noites são caóticas
mas as manhãs
devem ser práticas...

a vida nunca se nega

pelas manhãs
espero uma ligação do paraíso
mas é o diabo quem, à tarde, me carrega...

o tempo e a felicidade

podemos ser
num único momento
tão felizes quanto a eternidade

mercado de raridades

vivendo à míngua
troco amizades
por beijos de língua

mulher objeto

deitada contigo me calo
nada falo
distraída, cravo os olhos no teto

homem objeto

deitado contigo me calo
ereto
falo

reverências profundas

minhas idéias pândegas
sobrevoam tuas rotundas
e divinas nádegas

sei(-os) sábios

mamilos túmidos
ouvem atentos
os meus lábios


para encerrar, um poeminha simples:


Paixão sem palavras


Procuro em vão, um verbo
de rol castiço a termo chulo
nenhum se presta a explicar
porque por ti, ebulo...

domingo, 21 de outubro de 2007

Cu Doce

Tem gente que traça estratégias para tudo. Calcula as suas palavras, os próprios gestos, a postura, de forma a sugerir e antecipar as reações do, digamos, adversário, e levar vantagens. Acontece principalmente no âmbito profissional, nas relações de trabalho, nas negociações. Acontece, nesse âmbito, principalmente entre os homens. É válido, claro, pois quem melhor se prepara, quem melhor argumenta, quem melhor convence, ganha. Se a pessoa tem flexibilidade, traça estratégias alternativas e as usa de acordo com o andamento das negociações, melhor ainda. Se tem sensibilidade para perceber a reação de quem está do outro lado e usar as estratégias mais adequadas, suas chances de sucesso são enormes. Essa ferramenta é, portanto, muito valiosa.

Tem gente que leva isso a extremos. Age da mesma forma nas relações pessoais, escolhendo a melhor postura, a melhor conversa, a melhor imagem a ostentar, para cada caso. Não sei se gosto disso. Tende a tornar as relações falsas. Quem se porta de um jeito especial comigo para conseguir algo está, no fundo, me enganando, penso.

Antes de mais nada quero esclarecer que tenho pelas mulheres a maior admiração, adoro as mulheres, venero, gosto, aprecio, etecétera. Para não parecer misógino ou machista. Mas tenho observado que, nesse âmbito das relações pessoais, quem usa mais estratégias de comportamento visando obter determinados resultados é a mulher. Os homens, nesse caso, são mais verdadeiros.

Assim chegamos ao cu doce, uma das piores estratégias adotadas pelas mulheres. Acreditam elas que negar (querendo ceder) provoca aumento do desejo. Acreditam elas, piamente, que negar no primeiro dia é obrigatório. Acreditam que se fazer de levemente insatisfeitas colocam o parceiro na pressão certa. Ah, se as mulheres soubessem o quanto perdem com isso! Larguem dessas idéias preconcebidas, relaxem, dêem quando quiserem dar, neguem quando não interessar e pronto! Reflitam sobre essa máxima, do meu saudoso avô Pai Novato, que a repetia sempre quando jogava cartas: Tem que dar, dá logo!

Da reputação se cuida mais tarde...

terça-feira, 16 de outubro de 2007

Amar é Simples, Não?

Amor é Simples, Não?

Hoje acordei querendo fazer um poema, amar uma mulher, me sentir feliz. Mas como sempre...

Levanto, banho, lavo, como, ando, trabalho, atendo, cobro, pago, ouço, assovio, me arrependo, e depois me lembro, nem tive tempo para procurar essa mulher que se dirá minha musa e paixão... que dia após dia teima em existir apenas no meu pensamento... que se parece cada vez mais com aquela história da princesinha do oriente... Sem a mulher, tampouco há o poeta. Hoje eu deveria ter ficado na cama até mais tarde. O plano do poema desfaz-se em bolhas, some no ar, leva consigo a mulher e a felicidade pro céu. Hei de encontrá-la, amanhã ou depois da manhã.

Amanhã acordarei diferente. Colocarei na porta do quarto um aviso: procura-se uma mulher...

Mas que não me queira como esteio ou escora. Nem como amigo confidente. Não quero ser cara metade de ninguém, não sou príncipe encantado, sequer um cavalheiro que lhe leve flores, romanticamente. Quero uma mulher para amar, sendo somente eu... euzinho da silva, pecador ordinário, um tanto egoísta, ou hedonista, um tanto infantil, amante do prazer e do sorriso, do gozo e da felicidade, metade nobre e metade feio, meio sem jeito, um amador. Venerador de mulheres, dizendo-se poeta, levando a vida com o possível bom humor... Talvez não seja coisa assim, tão fácil, arranjar essa mulher que me queira, mas vou me esforçar.

Talvez eu acrescente: para um amor sem condições...

E que se entenda: nada me será pedido ou obrigado, nada me será imposto ou cobrado, deixe-se o barco correr. Sei que não completarei o que lhe falta. Sei que não serei o responsável por lhe fazer feliz. Não, não quero escambo, quero amor. Não seremos seres incompletos procurando no outro os pedaços que nos faltam, mas sim os dois já completos, inteiros, donos de nossos destinos e dos nossos corações, felizes de estar ao lado de quem se gosta por ser assim, cada um quem é, simples, não? Amor pode ter essa mínima dimensão de complexidade e ser tudo de bom.

Talvez eu tenha que escrever: venha, experimente!

Talvez eu tenha que me esforçar para convencer. Porque não faço promessas nem sonhos de ocasião. Não vou sonhar com nós dois velhinhos, sentados à porta, nem com os netos à nossa volta, nem com os filhos e os netos dos nossos netos, como diz a canção. Aconteça, se acontecer. E sei que é preciso um pouco de esforço de convencimento, afinal de contas sonhar é vício do ofício de viver, ainda mais à mulher, e jogar os sonhos mais românticos na lata de lixo pode doer.

Talvez eu encerre assim o meu anúncio: pois é apenas isso o que eu quero, ao acordar todo dia: fazer um poema, amar uma mulher, ser muito feliz... Simples, não?

domingo, 14 de outubro de 2007

Tempo Redondo


Assim tranqüilo vagava o meu espírito, a ermo, meu corpo deitado na cama mais encostada na parede, bem embaixo da janela, de onde eu via a boca amarela e torta pendurada no céu, lua tão alta. Minhas fantasias caleidoscópicas antecipavam as discussões que eu teria com os clientes e credores acerca de preços, entregas e pagamentos, e as delícias tão mundanas dos botecos e prostíbulos que me esperavam na cidade. Mais dois dias de marcha sob o sol escaldante que antecede as grandes chuvas, montado no burro grande com a carga, e eu só teria que andar ligeiro para não ficar preso ali, pois a qualquer momento tudo se alagaria. A possibilidade de ficar preso naquela casa perdida no meio do mato, naquele boqueirão, na companhia intrigante do estalajadeiro gordo e das suas conversas estranhas me assustava. Recordei-me do seu olho torto imóvel e do seu rosto trêmulo de papadas, e do que me disse sobre a origem do nome daquele lugar. Tumba Inamba, disse... Significava Tempo Redondo no dialeto de antiga tribo local. Na lenda, quem vivesse ali uma grande paixão ficaria preso para sempre naquele vale pelo tempo de um dia, para toda a eternidade.
Minhas pálpebras pesavam como chumbo. Antes de adormecer cheguei a ouvir o galope de vários cavalos e o movimento da porta se abrindo e fechando. Mais hóspedes que chegavam, certamente.
Acordei com a primeira claridade, mas já havia na cama ao lado, sentado e aprumado, como a esperar-me, um velho de barbas brancas e paletó cheio de medalhas.
--- Quem és?
Seu tom era ríspido, a voz um pouco esganiçada. Surpreso, continuei o meu ritual de acordar enquanto pensava na situação.
--- Sou quem já estava hospedado antes aqui. E o senhor, quem é?
Tentei ser ríspido igual, mas só me senti ridículo com a ridícula resposta. O velho empinou o nariz, colocou um brilho de orgulho nos olhos e se apresentou:
--- Sou o Marechal Deodoro, ao seu dispor!
Lá fora, uma voz alegre e jovial começou a chamar:
--- Papai! Papai! Venha!
Ele levantou-se, bateu continência, compenetrado, e marchou em direção à porta. Ainda pude ver, por trás da sua figura empolada, a jovem dona de tão agradável voz, uma moça morena de rosto delicado e longos cabelos amarrados atrás da cabeça, vestida com roupas de montar.
No salão à mesa do desjejum fiquei sabendo que os guias de aluguel que os trouxeram haviam retornado dali, com receio das chuvas, deixando-os à própria mercê para que completassem o trajeto. O velho e a filha iam para a mesma região que eu e logo combinamos fazer juntos o restante da viagem, sob as recomendações cruzadas e entusiásticas do estranho estalajadeiro.
Eles tinham belas montarias, dois cavalos jovens e fogosos, de bom tamanho, que nem pareciam sentir o peso da carga. Tive alguma dificuldade em acompanhá-los no primeiro dia pois o meu burro, embora resistente, não era um animal veloz. Esperaram-me onde combinamos, um curral abandonado, que eu conhecia de outras vezes ter passado por ali.
Embora a moça fosse muito bonita e o velho muito esquisito, a viagem transcorrera normalmente até ali. Acendemos uma fogueira e eu fiz café. Eleonora, esse era o seu nome, tinha um embornal com farofa de carne seca e um pacote com balas de banana. Ofereci-lhes biscoitos. Comemos em silêncio e estendemos as nossas capas no chão, aproveitando bem o resto das paredes e da cobertura para nos proteger do vento e do frio da noite. O velho empertigou-se e bateu continência para mim, antes de deitar-se. Do meu lugar eu via-lhes apenas os vultos estendidos sob as cobertas, por trás da fogueira. Era outra noite escura, o risco da lua apenas marcava o céu.
Acomodei-me sob o cobertor grosso, a cabeça sobre a outra manta enrolada à guisa de travesseiro, e fiquei olhando o céu escuro, matutando sobre a estranha lenda do Tumba Inamba e esperando o sono chegar. O fogo não crepitava mais e apenas o vento assoviava nas madeiras que restaram da casa de curral. Meu espírito estava pronto a vagar novamente, mas deteve-se antes na lembrança da figura atraente de Eleonora. Era, sem dúvida, uma bela mulher. E que natureza forte e que caráter decidido haveria de ter... O velho era louco, não se podia duvidar. Enquanto me admirava com a moça, em pensamento, nem notei o vulto que se aproximara, sorrateiro, e parecia prestes a atacar-me. Sentei-me imediatamente, enquanto o vulto avançava sobre mim estendendo um braço em direção ao meu rosto.
Era ela. Sua mão tocou os meus lábios e então notei que ela apenas tentava pedir silêncio. Estava tão próxima que eu podia notar seus traços, mesmo na escuridão quase absoluta.
Ela se debruçara sobre mim e o seu perfume de fragrância suave se misturava ao nosso cheiro de suor. Senti-me agradavelmente preso sob aquele corpo feminino, ao mesmo tempo em que a excitação me assaltava e fazia-me estremecer. Sua mão agora acariciava-me a face, e estava claro o que ela queria. Por alguns segundos, o inusitado da situação e a presença do velho louco, mesmo adormecido, foram como nuvens escuras passando pela minha mente, mas suas tímidas carícias prometiam tanto que me entreguei sem ressalvas ou preocupações. A moça havia desabotoado o vestido quase completamente e agora seu corpo parecia uma fruta madura saindo da casca, os braços nus, roliços, de pele macia, o colo que se oferecia aos meus lábios, o decote semi-escondendo os seios, mas abrindo-se quando as minhas mãos afastaram os panos aveludados e acariciaram mamilos que eram pequenos círculos mais escuros sobre a pele alva, flores da flor, frutas da fruta, e que destinaram-se como que por divinos desígnios à minha boca seca de sede e desejo, ansiosa por ter e dar o prazer do gosto de sal, do sugar, do lamber... Ela erguia-se aos poucos à minha frente, suas mãos explorando meu corpo sob as cobertas, seu corpo se oferecendo cada vez mais à minha boca, e quando quase em desespero despi-a completamente, enfiamo-nos sob as cobertas e entrelaçamos nossos corpos em um balé silencioso e mágico, línguas, mãos, coxas, seios e tórax, sexos, suores e outros fluidos, devagar, sincronizados, tensos, cada fibra sendo capaz de sentir tudo que havia para sentir, mudos, sussurrantes apenas, não de palavras, mas de gemidos vindos de tão fundo que mais entravam nas nossas almas, e o gozo veio igual para nós dois, aos poucos, à medida em que nossos corpos aceleravam a dança e vibravam juntos, e quando finalmente vergamos involuntariamente nossos músculos e ultrapassamos o fio do orgasmo, pensei que era como se um anjo piedoso resolvesse me mostrar, ao menos dessa vez, a porta aberta extraordinariamente bela do céu...
Ela ainda ofegou sobre meu corpo, agora como uma mole boneca abandonada, durante alguns instantes, levantou-se vagarosamente e arrumou-se, sem me dar palavra ou fazer um gesto sequer. Eu, que esperara o comportamento habitual de toda mulher com quem um homem goza e faz gozar, um aninhar ao peito, uma carícia no rosto, algumas ternas palavras ou apenas o ronronar de satisfação com a cabeça no meu colo, surpreendi-me com aquela secura. Talvez fosse melhor assim. Não me movi do meu lugar até adormecer.
Quando acordei estava, estranhamente, deitado numa cama embaixo da janela aberta por onde entrava a claridade e ao meu lado, na cama vizinha, sentado, empertigado, um velho de barbas brancas e o paletó cheio de medalhas...
--- Quem és?
Seu tom era ríspido, a voz um pouco esganiçada. Surpreso, ouvi minha própria voz ecoar pelo quarto, como se de outra pessoa:
--- Sou quem já estava hospedado antes aqui. E o senhor, quem é?
Havia igual rispidez naquela minha voz, ou apenas um tom ridículo. O velho empinou o nariz, colocou um brilho de orgulho nos olhos e se apresentou:
--- Sou o Marechal Deodoro, ao seu dispor!
Lá fora, uma voz alegre e jovial começava a chamar:
--- Papai! Papai! Venha!

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Jogo de Bola


Jogo de Bola

Gosto de futebol. Do jogo e da lambança. Se ando pela rua, desocupado, e de repente há uma pelada num terreno baldio qualquer, paro e assisto. Sou muitas vezes, sozinho, toda a platéia. Vício. Nunca, porém, vi uma partida num ângulo tão inusitado: de cima, como se estivesse num balão flutuante. E é bom de se ver, uma partida daqui de cima. O gramado verdinho, as árvores em volta, as linhas do muro, o telhado ora vermelho ora preto de sujo, as paredes brancas e as colunas de madeira, cenário tão estranho e tão conhecido, minha casa querida, tão nova, tão diferente.

Nesse momento jogam uma partida no meu gramado. São sete contra sete, como catorze bestas do apocalipse. Um time só de calções. O outro de camisas brancas sociais de mangas compridas. Quem pede, recebe, quem se desloca tem preferência, antiga e eterna filosofia do futebol. Tenho a cara redonda como uma bola. A bola, correndo no meu gramado, olhando-se bem, parece comigo...

A madrugada me encontrou acordado. Como em todos os dias, eu vigiava e esperava. Olhei pela janela e vi aquelas pessoas sentadas no meu passeio. Eram apenas oito. Pensei em pegar o meu revólver e ameaçá-los, mas não o fiz. Apenas olhei para aqueles homens miseráveis, sentados em silêncio na minha calçada. Reconheci um ex-empregado, não me lembrei o nome. Outros chegaram, esparsos, discretos, silenciosos, e sentaram-se também. Como se chegassem para o trabalho e aguardassem ali a abertura dos portões, numa fábrica qualquer. Neo foi dos últimos a chegar. O dia clareava depressa, eles esperavam em silêncio. Alguém comandaria tudo. Neo, talvez... Chegaram mais três, esses juntos. Todos se levantaram, agruparam-se. E então vieram em direção ao meu portão.

Eu tinha orgulho daquela mansão, trabalhei duro... Corri e abri o portão, antes que o derrubassem. Não queria máculas. Fizeram um semi-círculo à minha frente, um tanto surpresos. Enfrentei-os fitando-os nos olhos, um a um. Alguns tremiam os lábios mas nenhum baixou as vistas. Nem Neo, que me encarou com ar feroz. Recuei, dando-lhes espaço mas tomando a entrada da casa. Cercaram-me rapidamente e então senti um golpe no pescoço. Apaguei, por um instante.

Há um pequeno intervalo, entre a morte e as primeiras luzes. Nesse intervalo, sonhamos com um útero. Então de repente eu vi, como se estivesse num balão flutuando a alguns metros de altura, mas com toda a nitidez, meu corpo decapitado em frente à entrada da varanda, onde fui atingido pelo facão de Neo. Havia um entra-e-sai. Ligaram o meu equipamento de som, nas doze versões da Ave Maria. Entravam e saiam com garrafas. Beberam uísque, vodka, cachaça, vinhos... Alguém apontou para o campo gramado com as traves de futebol. Não havia bola. Apontaram, então, o canteiro onde estava o meu corpo decapitado. Alguém se abaixou e apanhou a minha cabeça. Eu ia ser a bola. Entraram na casa para apanhar os uniformes. Um dos times usaria camisas. Um branco magro chegou com uma pilha de cabides, com as minhas camisas sociais. Escolheram as brancas para os jogadores de linha e o goleiro preferiu uma cor de goiaba.

Minha cabeça foi então colocada no centro do gramado, cada time arrumou-se do seu lado, os sem camisa com suas bermudas escuras e sujas, todos magros de pernas finas e joelhos proeminentes, pareciam fracos demais para aquela peleja. Do outro lado, orgulhosos em suas camisas de mangas compridas cobrindo os calções, alvíssimas, o time que parecia, por isso, mais preparado. Não havia juiz. Eram sete de cada lado, as sete bestas...

Neo era o centro-avante do time de camisas. Parecendo mais comprido ainda com aquela camisa enorme, postou-se no ataque e ficou esperando que a "bola" lhe chegasse. O jogo começara embolado no meio-de-campo, pois a minha cabeça não era uma excelente bola, pois não quicava quando tocava o chão, pois pesava demais. Nos primeiros chutes o sangue espirrara e manchara as camisas, e então os jogadores não queriam mais chutar de qualquer jeito. Tentavam acertar no meu cocoruto, para que o sangue espirrasse para a frente. Um enfiou o pé por debaixo da minha orelha e levantou a bola para o alto.

Luto contra essa força que me carrega cada vez mais para cima, parece em vão, até que eu simplesmente penso "Poxa! Mas eu gosto tanto de futebol!". Imediatamente, a força deixa que eu baixe novamente até ver com nitidez o que acontece lá embaixo. Ver o futebol ainda pode, mas nada de querer voltar à vida...

A minha cabeça, lembram-se, foi jogada para o alto. Todos os jogadores acompanham a trajetória, há um empurra-empurra na área do time de camisas, que está sendo atacado e onde minha cabeça deve cair. Um branco de ombros largos e camisa impecável, zagueiro, abre os braços e afasta quem está por perto. A cabeça desce, girando, espirrando sangue para todos os lados, mas ele se posiciona dobrando o corpo para trás, mata a "bola" no peito e com um toque de classe dá um balãozinho na direção do ataque. Grande jogada! Que categoria! A camisa sai-lhe ensopada de sangue, mas seu sorriso indica que ele próprio gostou do que fez. A minha cabeça viaja, suave, na direção de Neo, que continua no ataque, de costas para o gol dos sem camisa. Vem na altura certa. Neo não deu um único chute no jogo, ainda. Joga também o corpo, para trás e para cima, deita-se no ar e quando a "bola" chega na altura certa, dá a pedalada. Pega na veia. Uma autêntica bicicleta, jogada de craque. O sangue espirra e a cabeça, impulsionada pela força do chute, passa como um raio entre o goleiro e a trave. Golaço!
Todos correm para abraçar Neo, mas ele se livra logo da comemoração e corre para dentro do gol adversário, para pegar a bola e a colocar debaixo do braço, decretando o fim da partida e ficando com a minha cabeça como troféu.

Suspiro de prazer com o que acabo de assistir. Minha alma sobe novamente, então, leve e satisfeita. Foi um belo lance. Depois de bem lavada e posta para secar e curtir com sal, espetada sobre uma pequena estaca e posta num pedestal, a minha cabeça irá enfeitar a galeria de troféus de Neo, com uma pequena e singela inscrição: "Bola do Jogo Em Que Fiz um Gol de Bicicleta".

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

É bom consultar os astros!

Hoje é quarta-feira, véspera de lua nova. A conjunção dos astros é perigosa. O alinhamento dos planetas é caótico. Estou, agora mesmo enquanto escrevo, sentindo um cheiro de tragédia no ar. (Ops, relevem esta última informação, era só o pão queimando no forno, perdão!). Essa situação astral afeta os espíritos. Principalmente dos bichos, dos computadores e das mulheres. O peru brigou com o galo, briga feia. Enquanto eu procurava um lugar melhor para apreciar o embate, um ganso saiu de perto do ninho e me atacou. Corri daquele bico serrilhado e quase tropecei em duas dangolas se perseguindo pelo terreiro, ligeiras como carros de fórmula um. Pelo menos os cães estão presos, pensei, antes de enxergar as penas de galinha voando para todo lado. O motorista ligou dizendo que o carro estava quebrado. A internet, obviamente, não entrou. Espero que não telefonem do banco ou da escola dos meninos. A minha namorada estava irascível, ontem. Um gracejo à mocinha do caixa quase me rende um desaforo. A mulher da loja de queijos parecia meio desesperada, sem paciência, coitada (e do marido). Esses dias de má conjunção astral são terríveis. Excetuando-se alguns seres mais distraídos, não se consegue encontrar bichos que estejam sossegados. Nem computadores que funcionem bem e rápido. Nem mulheres que sorriam, de almas leves e espírito desarmado.

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Hoje é dia de águas. Correntes.

Fumo no Riacho


Fumo se banhá num riacho
eu mais uma bela donzela
da ponte, fumo logo pra baixo
pra ninguém ver, eu mais ela
só que tinha uma casa ali perto
com uma dona na janela
e de onde nóis tava encoberto
por trás de um morão de cancela
nem carecia vim mais perto
nóis tava bem na mira dela
e enquanto nóis cá se ocupava
achano que tava bem iscundido
a dona de lá só espiava
pensano se chamava o marido:
"Vem ver, Zé, os dois semvergonha,
o nêgo é o Tonho, fio de Fia
e a nêga é Fia, fia de Tonha,
os dois na maior putaria!"

Mas a Dona ficou foi calada
zoiano o que nóis dois fazia
na janela adibruçada
de tanto que as carne tremia
quais que os óio esbugaia
quais que os pelo arrepia
quais que os sentido lhe faia
quais que o diabo vencia
um fogo por dentro lhe veio
um arripio se deu-se por fora
endureceu os bico dos seio
rezou pra sua nossa senhora
fechou os óio, muleceu
sortou da janela os batente
deu um suspiro e desceu
os óio revirano, contente
relaxou, drumiu, drumeceu!

Sonhou que se banhava co'a gente
e que o seu sabunete era eu...

Lúcidos




Arrepiando o rio que serpenteia em prata o verde vale ao sol do fim do dia, a brisa que arranca meu perfume e seca meus cabelos é o mesmo ente que traz pelas mãos o frio e a mansa escuridão da noite. É o mesmo que me franze os olhos e me acaricia os pelos, e me assusta só um pouco quando os contornos dos montes se esfumam e a solidão apalpa a minha alma. É o que mora no silêncio dos murmúrios das folhagens e dos mugidos. É o do canto misterioso da coruja, do voar dos morcegos em sua perícia cega, dos coaxares e dos piares, do desespero das rãs, dos olhos esbugalhados, dos chapinhares, das cobras e dos lagartos, dos grilos e dos pirilampos, dos mistérios das margens, do peixe que fala "boa noite, meu bem!".
Acocoro e aquieto meus temores. "Boa noite, meu bem!". À bolsinha que se fecha numa croaca, peça antiga de couro cheiroso, é dado o nome de boceta, para meu desespero de criança. Ganhei do meu avô. À palha seca de milho acrescento o seu conteúdo e aperto. Gosto do meu casaco do exército com seus tantos bolsos que eu nunca sei quantos. Aperto e acendo. Aspiro. "Boa noite, meu bem!". A fumaça sobe em espirais azuis contra a bruma azul e é tudo blue em mim também. Blue, blu, bilu. Eu tinha um amigo que se chamava Kalu e não gostava da música do circo que perguntava quantas pregas tinha o seu vestido azul.
O escuro é sólido. Eu sou pálido. O mundo é pérfido. O meu mundo é ínfimo. Eu sou lúcido. Lúcido de ácido. O meu medo é mórbido. O rio é fétido. Pescar é hábito. Delirar é típico. Gosto do seu hálito. Seu corpo é cálido. Sonhar é ótimo. Esperar é mérito. Um vulto, entre as brumas, está ao meu lado. Como uma princesa das trevas, em seus passos mágicos, uma Morgana suave e bela, saída de um lugar qualquer, uma franja do rio, uma loca, um poço profundo, um oco de pau, nunca sei de onde você vem, mas sua boca me diz que você é o peixe que fala "boa noite, meu bem!". A boceta e a palha...
Suas mãos são alvas bailarinas, cincopéias entrelaçadas que enfeitiçam meus olhos e me iludem, e sua boca é uma greta fina quando aperta e fumega, boca de greta e vulcão, e sua fumaça persegue minhas espirais como sonhos em pega-pega nos céus. Acocora e aquieta suas inquietações.
A grama é úmida. Seu olhar é trágico. Meu amor, platônico. Seu desejo, lúbrico. Sou tímido. És rápida. Lúcida. Tépida. Hipnótica víbora, devora-me estático. Gosto de sentir-me um pedaço de corpo jogado sobre a relva molhada e coberto pelos seus humores, gosto de como me possui com fome, gosto de sentir seus dentes e unhas em minhas carnes, gosto de inventar sabores para suas línguas múltiplas, centolíngua milprazeres, gosto quando seu suor e seu sal e seu óleo me recobrem e seu corpo escorrega sobre o meu e o nosso amor é elétrico e quântico e louco, e quando você se desespera de gozo e me asfixia com seu sexo, lúdico.
Somos crápulas, somos angélicos, somos ofídicos, quando serpenteamos mágicos nessa margem lírica desse recôndito regato nesta noite mística prenhe de anjos lúcidos. Lúcidos de ácidos. Somos o que inventamos, somos, do outro, o ópio. Somos sonhos luxúricos. Somos eróticos.
O sol é delicado quando toca a bruma mágica e a transforma em névoa. O rio serpente brilha em outra ótica. A brisa é fresca. Matutina. O meu casaco úmido tem tantos bolsos que nem sei quantos. Estou desesperadamente lúcido. Nu, me banho na serpente gélida. Existem indícios por toda a volta. Não foi um delírio. Indícios no meu corpo. Na minha alma. Não sou um caso clássico. O meu amor é que é tóxico.

sábado, 6 de outubro de 2007

Maluca Lírica


A janela está aberta. O vento, preguiçoso, apenas estremece a cortina de seda e leite. Vaza pelo lado, escapole pela porta entreaberta. Entro. A cama é um mar revolto de lençóis e colchas. Cheiros. A colcha vermelha escorre pela beirada e cobre parte do tapete vinho que cobre parte do chão castanho de madeira. Gosto dessas passagens de tons. Vivo, denso, morto. Castanho é morto. Na mesinha, um copo largo, de uísque, vazio. Um cinzeiro, vazio. Perfumes. Perto do armário, sua sandália de salto. Linda...
Piso no tapete e aspiro os cheiros, toco a colcha com a ponta dos dedos, estremeço. Evoco as cenas. As costas largas e musculosas dele, o corpo moreno parcialmente coberto, ela em seu corpo delicado e alvo sob aquele colosso, os ruídos, todos, das respirações aceleradas, dos suspiros, dos movimentos... Os gemidos, os delírios, os corpos se roçando, bocas e pescoços e lábios e mãos e dedos e sexos e fluidos... Estremeço e corro até a janela. Aspiro agora o ar puro da manhã, tomo fôlego. Não quero olhar para fora. Meus olhos não vêem nada. Minha fantasia agora os apanha deitados, um ao lado do outro, despertando devagar... Sorrisos tímidos, felizes... Carícias... Olhares... De repente o homem agarra-a e puxa-a para sobre si, enquanto se livra dos lençóis e das cobertas. Agora são as suas costas, delicadas, em primeiro plano. Sua curva suave dos quadris, suas coxas abertas sobre o homem, seus cabelos, seus seios pequenos...
Meu corpo treme e minha boca está seca. Sei exatamente como acontece, mas não sei o gosto...
Corro para a biblioteca e apanho na prateleira o sétimo volume da segunda estante. Deito-me no sofá, com o livro apertado contra o peito. Aguardo. Passo o dedo pelas pontas das folhas, aspiro. Seu cheiro. Aroma crespo, denso, morno, farto... Fumo. O livro escorrega das minhas mãos, para o meu corpo e para o sofá. Seu cheiro continua em mim. Impregna-me. Fecho os olhos e sinto tanto desejo que vou enlouquecer. Respiro, tremo, arrepio-me, molho-me, reteso-me... Acaricio-me. Lento. Forte. Rápido. Gozo... Adormeço.
Quando acordo, me recomponho rápido. A blusa com os botões abertos, a saia dobrada acima da cintura, sintomas do meu vício. Tento perceber se há mais alguém. Ainda é cedo. Tudo está em silêncio. Reponho o livro. Ando lentamente até o pequeno quarto. No caminho, tento relembrar o seu rosto. Todos os homens têm o mesmo rosto, e é o rosto desse homem que eu desejo tanto. Todos têm o mesmo seu corpo. Todos têm o seu cheiro. De pétala curtida, justo, áspero, sonso. Papai e Mamãe nem sonham. Viajam.
Sei exatamente como acontece, mas nunca senti o gosto... Não sorrio quando ele brinca comigo e me chama de sua cunhadinha preferida. Não dou pistas sobre o que sinto. Não falo do assunto com ninguém, muito menos com ela. Somos parecidas. Ela é mais velha e mais bonita. Linda, de sandálias de salto. Ela não sente ciúmes, me acha criança. Maluca Lírica, me chama. Não ligo. Sei como acontece, mas escondo. Nunca olho em seus olhos. Papai e Mamãe nem sonham. Gosto de guardar esse segredo. Gosto do seu cheiro naquele livro que ele lê tanto. Livro mais bobo. Kama Sutra, outro segredo. Não o olho nos olhos nem quando ele me fita, pela porta entreaberta, enquanto ela goza. Prendo a respiração e fico séria. Ele me vê na penumbra. Ela nunca nota, tanto goza, a tonta. Também não o olho nos olhos quando ele quase me come, do tanto que olha meus seios ou minhas coxas, se, distraída, me sento sem cuidados na sua frente. Nem quando deixo a porta encostada, quando tomo banho, e ele se esgueira e entra e me olha. Papai e Mamãe nem sonham. Nem quando ele diz em meu ouvido que vai me comer assim que enjoar dela... Tonta!

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Saudade de Tereza

Acenando, da porta entreaberta
seu corpo nu, e de meias
meia penumbra, imagem incerta
minha fantasia sem peias
aumenta a saudade que aperta.

(Fixo a sua imagem em minha mente:)

De meias, lindas coxas e pelos
Tereza, na porta, entreaberta
apenas de meias, e pentelhos.

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Desafio

Nesse meio de tarde quando caminho pelo porto não vejo romantismo na paisagem bela, só sinto o cheiro de peixe e urina e me assusto quando algum desocupado emerge de repente, por uma das escadas, com o olhar demente, de drogado, talvez. Eu, que estou tão bem vestido e penteado, como um príncipe, e posso ser assaltado... Mas minha sorte me convêm, e a brisa forte e gelada, se esfria muito a minha cara pelo menos leva os odores e coloca outros no lugar, de alto mar, de um pouco de petróleo, de algas e sal. Passo a mão pela balaustrada e apanho a poeira, é um ato proposital e simbólico, uma revolta, a de ter as mãos sempre limpas e a mania de lavá-las a qualquer hora, penso em lambê-las, mas posso ficar doente e desisto. Minha razão me comanda, e eu nem bebi alguma coisa ainda, me dá vontade de sentar num bar, não há um só bar neste porto no qual eu nunca tenha entrado, mas em tantos anos e com tão pouca memória, qualquer um é como novo. Atravesso a rua molhada e me enfio no primeiro, está escuro, umas putas riem numa mesa, adoro as putas que riem no meio da tarde, e um velho de barbicha e tranças toma um chope e fuma, parece um pederasta, coisa tão fora de moda.

Tomo fôlego e recomeço, pensar me exausta (gosto desta, deixe-a aí), pego o seu bilhete e desdobro, como uma trouxa de maconha, o que está escrito é puro vício, não quero chope, quero metal pesado, sei que não tem absinto, nem sei o que é exatamente essa merda, falo de uísque oito anos, bem vermelho, quero ver a garrafa e diga às putas que não parem, gosto do seu riso cristalino saindo por seus dentes podres, mas isso não precisa, nem exagera, não vai ver gorjeta, filho da puta! "O senhor é engraçado, toda vez...". "Esqueça-me por umas horas.". Volto-me ao seu bilhete, que já amassava, puta dor de cabeça, você disse que eu nos encerrava sempre que você recomeçava e que vinha direto a Salvador, quem sabe você é dessas putas lindas que entraram agora, todas são putas mas eu amo-as, eu que sou o maior puto dessa história, e quando cheiro o papel de seu bilhete amassado, todos olham, menos o veado, que já olhara antes e não ficara satisfeito com a minha careta. Tenho a maior vontade de dar um arroto, mas não combina com minha cabeleira nova, deixada crescer e anelar, e com minha barba agora farta, e com a minha cara mais magra, minhas roupas novas e meu mocassim tão bonito.

O metal pesado desce macio, gosto de falar goela, mantra goela bom, goela bom, e o gelo que esse filho da puta trouxe deve ser de água ruim, mas quando pago a conta ele ri, porque eu cantei minhas poesias e elas são engraçadas, menos a da estrela e a da princesa, e ele me toma de volta o pandeiro que eu distraído pensava em levar (de araque). Arrisco uns passos de dança e me curvo todo para os aplausos, todos pensam que estou bêbado, eu mesmo posso pensar isso, mas quem dera, ainda tenho muito que pensar em você, sua cadela vadia, que me faz rondar esse porto todo dia e nunca que aparece, e me faz sonhar que um dia você vai estar dando um show num botequim, lá em São Paulo, pela televisão, e vai cantar uma música minha e dizer meu nome, e quando o close mostrar seu olho brilhando eu vou ver uma lágrima, e sua voz estará mais rouca quando cantar a outra música e eu vou acreditar que você ainda chora por mim.

Apanho meu casaco e saio, e o vento agora é mais gelado ainda, nesse inverno baiano de vinte graus centígrados, que quer dizer que são vinte numa escala de cem, parece, e tudo que eu penso me exausta (deixa aí!), e eu então desço a escada e entro na água suja desse porto lindo e miserável, e meus mocassins ficam nos degraus que estão abaixo da linha de água e minhas pernas sentem frio e meu saco molha, e meu dinheiro vai boiar no dia seguinte, com minha cédula de identidade funcional onde se lê engenheiro agrícola elétrico mecânico hidráulico e tocador de pandeiro e berimbau, e quando a água já bate no meu pescoço e não há mais escada não sinto tanto frio, e deixo meu corpo boiar indo e vindo, como um tronco de coqueiro, mas mais bonito, e vou colocando o corpo reto, até senti-lo todo boiando na superfície. Abro os olhos e vejo as estrelas escondidas atrás da nuvem rala, e por trás de tudo vejo a força do Senhor de Tudo, que pode mandar no caralho do céu dele mas não me afunda, e eu fico ali desafiando Ele, "Não afunda!", "Não afunda!", e quando vejo que Ele não vai mesmo conseguir, lentamente, movo os pés e me transporto de novo para a mesma escada, com tantas lágrimas nos olhos que não enxergo mais as estrelas.

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

O Discreto Charme da Natureza


A Natureza, dadivosa, espalha imagens simples e maravilhosas ao nossos redor. Mas um dia alguém destampou o ralo e essa merda começou a girar, cada vez mais veloz, como se realmente fosse verdade que é preciso correr, estressar, ansiar, não-ver, não-viver. Logo após essa foto alguém , passando apressado por mim, pisoteou o talinho de capim. Acompanhei-o com o olhar e vi que sua pressa era para não perder o lugar numa amostra de fotos, acontecendo na galeria logo ali...

terça-feira, 2 de outubro de 2007

Coisas estranhas se Deus existe...

Coisa estranhas acontecem.

Por trás dessa consciência tenho outra, primordial, instintiva, que me define como, apenas, ser humano. Dessa consciência profunda como um poço de profundas águas negras, dos seus monstros terríveis adormecidos pelo meu verniz de pessoa moderna, tentáculos poderosos teimam em vir à tona. Querem a minha garganta. Por isso de vez em quando, quando chove lá fora, quando uma música estranha toca em meus ouvidos, quando meu coração parece rígido como pedra, descubro-me apenas pequena parte desse todo que chamamos mundo e irmão ou parte do único que somos, nós tantos todos. Há de haver um Deus por trás de tudo isso.

O coração parado é apenas tentativa, não fosse musgo o que lhe recobre, pedra, neste frio interno que quase me congela. Sinto as pontadas de gelo da angústia, sinto a paralisia que confirma minha impotência ante tudo que sofremos juntos, nós, no conforto das nossas barricadas, vós, na fome e pobreza das vossas choupanas. Rostos envelhecidos antes da hora, sulcados do vento frio do relento, oferecendo braços a preço de miséria, esvaindo em sangue pela sobrevivência, sou esse tu que implora, quer o fim de cada dia intenso, todos desumanos, injustos. Cadê o Deus por trás dessa tragédia? Tristemente constato que a planta que medra sobre a terra regada pelas minhas lágrimas é a mais fraca; que mais forte é a da terra regada pelo teu suor, e maior ainda será aquela outra, que crescerá onde estarão nossos despojos, de sangue, cartilagem, coisas velhas e ossos. Somos apenas o estrume último desse campo cujo cultivo não compreendemos. Haverá um Deus que nos proteja?

Quando o muco se desfaz e assim o meu muxoxo, não sei se o tentáculo astuto vai-se embora agora por estar satisfeito. Liberta, minha garganta grita apenas um grito rouco, pequeno, pouco. Fechada a tampa do medonho poço, vagamente penso em apagar as fronteiras que dividem o mundo, em acender as velas que iluminam os tolos, mas não tenho receitas para os outros eus que se encastelam acima dos todos nós, bobos mortais, e nos sangram e nos parasitam. Haverá um Deus sobre esse nosso destino? Morrer é a solução que por tão certa não se necessita. Viver é perigoso como um quarto escuro. Com esses tijolos frágeis construo o enorme labirinto onde, por espaçoso, às vezes passeio dentro. Quando não procuro saída, uma saída encontro. Só não encontro a que procuro.

Pensar no cotidiano me resgata definitivamente dessa teia viva. Seria Deus a convencer-me disso? Suspiro e sigo em frente, vou pagar minhas contas, arrumar minhas roupas, tomar minha água limpa. De volta aos sentimentos que me remetem aos principais pecados, tendo afastado de mim definitivamente o cálice, cometo. Tentáculos em minha garganta são cada vez mais distantes, apenas lembranças dessa mente fraca e poderosa, que já se dissociou do todo do qual fazia parte antes. Do enorme ser quase santo quase deus do qual eu era uma pequena parte, sou toda parte do eu minúsculo e enorme em que agora me encontro. Tomo mais uma cerveja pensando em quanta coisa estranha passa pela nossa cabeça, quando achamos que algum Deus existe.