domingo, 4 de novembro de 2007

Guisado de Amor

Desmantelo, pendulo, saio do eixo
ao te ver novamente me encanto
e tão desassuntado me deixo
a imaginar, e sonho tanto...

Sonho que és malíssima fera
que as minhas entranhas devora
em boníssima e formosa senhora
que tal banquete de mim espera

Da casca sei que não fazes questão
mas sonho que me queres por dentro
fígado, rins, baço, pulmão,
fatiados e ao molho, com coentro

Ossos, veias, músculos, recheio,
queres tudo que sou pelo meio
com coentro, fatiado ou ao molho
to dou-me completo, não me escolho

Sonho que é bom, mesmo assim
ser devorado por ti, aos pouquinhos
teus dentes, delicados moinhos
os algozes do meu tão doce fim

Só que não me queres tomado
antes me queres doado e servido
em bandeja de prata, arrumado,
temperado, ao ponto e cozido

Em mestre-cuca então me vejo
a preparar-me em banquete
"Se é da rainha o desejo
pois que derrube-se o palacete!"

Meu coração, faço-o em pedaços
derreto-o em gotas, como cera
disponho-o em baixela de aço
misture-se ao molho madeira

Se mais me queres, mais to dou
de outras partes me desfaço
e tens mais, agora, do que sou
pulmão, estômago, fígado e baço

Com coentro e com o molho já dito
em fatias sirvo cada prato
regale-se a rainha, ao infinito
admire-se o tempero, o ponto exato
Mais ainda, porém, queres tu
já te dei esse estofo, de que sou feito
e deixei-me então, por dentro, nu
também vazio o outro peito

Embora oco de todo recheio
encontro-me ainda em boa figura
rodeado de partes, sem meio
como uma bela armadura

Se mais partes de mim ainda queres
dou-te mais, mas muito pouco
quase caibo em duas colheres
se ainda queres do oco...

Se porém te agradares de mim
dessoutra parte que me sobra
não levarás coisa ruim
nem to dou-me em pele de cobra

Mas tenhas pressa, quase já acabo
ainda tenho cá pernas e braços
dariam um bom guisado, com nabos
cortados em pequenos pedaços

A barriga, as orelhas e os pés
dou-te em prato bem salgado
uma feijoada, nota dez
ou um generoso refogado

Da cabeça, que convém bem limpar
os neurônios vão em boa moqueca
das orelhas, faz-se o caviar
os olhos vão bem em panquecas

Resta um só problema a resolver
é a sobremesa, para o final
com que servir, como fazer
inteiro ou em rodelas, o meu bilau

Acordo, enfim, desse devaneio
e já não estás, te perdi novamente
vivo e inteiro, capa e recheio
desmanchado de amor, sigo em frente...

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