quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Cão Vadio


Sou preto, alto e magro, elegante para um cachorro, mas vadio... estou habituado a andar por estas ruas deste bairro calmo que chamo de meu território... como cachorro, não tenho obrigação de saber-lhe o nome, nem das ruas, nem de nada, sou só cachorro, e vadio... um cão vadio... tenho minha sombra predileta sob um oitizeiro na praça onde estão a construir uma igreja, e ali fico deitado, com a minha enorme língua pendurada, a minha cabeça erguida, numa atenção despropositada, já descobri, acompanhando, sem razão, os mínimos movimentos dos passantes... minha vida é andar e fugir... pode parecer sem graça, uma vida assim, mas desta minha eu gosto... perambulo pelo bairro, à procura de restos de comida e de cheiro de cio... nada mais interessa a um cachorro, na verdade, somente comida e fêmeas no cio, exceto para os outros cães, os que têm dono... não que seja uma vida pacata e sem riscos, esta minha, pois que os garotos jogam pedras e me perseguem, às vezes... mas esse não é o maior perigo que enfrento... tampouco os adultos, que faço questão de ignorar, e que, quando me vêem, ou sentem um medo discreto (confesso que minha figura não é exatamente ameaçadora), ou me dispensam somente indiferença... perigo mesmo, que enfrento, são os enormes cães tratados a pão de ló, mal presos nas casas, tão ferozes e pesados, e que quando acham um jeito de escapulir, quando passo, me perseguem por todo o bairro, e não fosse exatamente porque são balofos da comida farta e boa que os donos lhes dão, e não fosse minha astúcia e minha rapidez, em vez de escapar como faço sempre sei lá o que seria de mim... por toda parte onde ando, ouço seus latidos agressivos, desesperados, destes cães magníficos, bem tratados, que espiam pelas grades e frestas dos enormes jardins... não é fácil achar comida revirando as latas de lixo desta parte rica do bairro, puro desperdício de tempo, mas de qualquer forma, por puro hábito, confiro-as... na parte pobre do bairro, porém, as mulheres jogam a comida nos passeios ou na rua, mas não no lixo, para que eu e os outros cães vadios tenhamos o que comer... e com a mesma generosidade que percebemos nestas pessoas desta parte pobre do bairro, que dividem o pouco que têm com quem não tem nada, nunca sequer rosnamos uns para os outros quando do mesmo naco somos vários a tentar se alimentar... nos finais de semana, porém, eu gosto das latas das casas ricas, pródigas em restos de carnes e gordura, pedaços de churrasco, acompanhamentos, ossos... no domingo, em especial, existem as pizzas e os restos de frango assado, restos de peixe, algum suflê ou salada, regalos que engulo rapidamente quando os acho, temeroso da ação dos vigias e do barulho que os cachorros das casas fazem ao me notar... gosto mesmo, porém, é quando sinto o cheiro de fêmea no cio, este perfume acre e antigo, que faz meu corpo preparar-se para as longas jornadas de cerco, e que diminui a importância de tudo o mais e faz sumir meu apetite colossal, e que sinto mesmo a quadras de distância, e que quando sinto me coloco em todo alerta e levanto meu focinho frio para o ar, atento a qualquer sinal de latidos de outros machos, e que sei exatamente de onde vem, se ando de um lado para o outro e percebo a variação da sua intensidade, e me faz deixar tudo para trás e seguir, no meu disfarce eterno e no meu passo ligeiro, orelhas murchas, tentando não chamar a atenção... e quando acho a fonte deste cheiro mágico, normalmente uma cadela presa em casa de grades e grandes portões, faço cara de sonso e me deito, deixo meu próprio cheiro espalhar-se e, se dou sorte e a cadela escapole, copulo com ela no meio da rua, e não me importo com as pedradas e os gritos, com a água fria e os impropérios, e quando encho a fêmea com meu sêmen farto sei que daí há algum tempo muitos filhos terei, já minha prole extensa e variada enche esta cidade em tantas das suas ruas, tantas vezes foi assim... nesta noite de chuva fria e fina quando a lama toma conta de tudo nas ruas de terra e as pessoas se recolhem e poucos carros passam por aqui, procuro o vão protegido do vento ao lado da igreja em construção, onde costumo me enroscar para dormir a salvo das crianças e de suas pedradas, quando farejo, mais do que vejo, uma pequena bola preta, trêmula, com o inconfundível cheiro de cachorro novo... perdido ou abandonado, é uma cãozinho com poucos dias de vida... talvez seja um filho meu, como irei saber? na dúvida, e porque tenho esse espírito generoso que une os necessitados, resolvo deitar-me ao seu lado, aquecendo-o com o meu corpo e protegendo-o como uma mãe... de tão pequeno, ele ainda não anda direito e eu tenho que trazer-lhe alimento e cuidar dele, e me afeiçôo, e faço-lhe cafuné e enfio meu focinho sob sua barriga para rolá-lo no chão, e ele rosna e gosta de brincar comigo... depois de algum tempo, muitos dias, tantos que eu perco facilmente a conta, não é da minha natureza contar os dias, ele vai-se tornando um cão troncudo e pesado como esses das casas ricas desta parte do bairro, mas bem humorado o pacífico como eu próprio lhe ensinei a ser... pouco tempo mais, e ele já me acompanha, grande e desajeitado, derrubando latas, aprontando correrias, e somos dois azougues impertinentes zoando absolutos pelas ruas deste nosso território... como me sinto remoçado com a sua companhia, com a sua alegria e sua disposição! quando ele pula sobre meu pescoço e quase crava seus dentes numa mordida carinhosa, sua maneira de começar uma brincadeira, e dispara como um foguete só para que eu o persiga, e eu dou um salto em sua direção e distendo meu corpo comprido e leve, e uso toda minha envergadura para, mal tocando o chão com as patas, aproximar-me rapidamente dele, e quando estou quase alcançando-o e ele dá uma inesperada guinada, um drible desconcertante, e eu passo por ele sem alcançá-lo e aprendo que ele já sabe mais recursos de escapagem que eu, e ele late alto e abana o rabo como que rindo de sua nova sabedoria, ou quando ele tenta uma manobra mais ousada e se atrapalha e rola pelo chão e eu o alcanço e ele rapidamente me subjuga com seu peso e sua agilidade, e num átimo está sobre meu corpo com suas poderosas mandíbulas encaixadas no meu pescoço, e eu fico quieto com uma pontinha de medo que, no calor, ele feche aquelas mandíbulas de aço e triture minha garganta, e aí eu sei, definitivamente que ele é melhor do que eu fui ou serei, e fico orgulhoso de tê-lo ensinado e ser, por assim dizer, o seu verdadeiro pai... e fico imóvel por muito tempo ainda, enquanto ele ofega sobre mim, até que ele se desinteresse em me manter sob seu jugo e parta, veloz, em outra corrida desabalada que nem sempre tenho forças ou ânimo para acompanhar... e agora sinto esse cheiro forte de cio e sei que ele também sente, e que agora ele é um cão adulto, e identifico a cadela que, a poucos metros de nós, estará ganindo e enfiando o focinho pelas frestas do portão, e sei que a cadela, sendo também tão vadia, fará como nas vezes anteriores e pulará sobre o muro baixo da casa e saltará para a rua, e de repente temo pelo que poderá ocorrer, mas esqueço, pois que o cheiro de cio me domina e me faz esquecer tudo o mais, e a cadela já na rua aproxima-se e cheira meu pelo e o do outro cão, e eu tento montá-la como tantas vezes fiz, e ele também, ao mesmo tempo, e eu rosno toda minha autoridade e experiência mas ele rosna e joga suas patas pesadas contra meu corpo, e a cadela se assusta e se afasta, e eu me vejo frente a frente com o temível oponente e me lanço ao ataque, esperando fazer valer mais minha pretensa autoridade de quase pai que a minha força, que sei insuficiente para enfrentá-lo, e ele, dominado como eu pelo cheiro do cio da vadia que a tudo assiste, mostra-me os dentes num arreganhar medonho e parte para o ataque, e em poucos segundos me domina e faz como tantas vezes seu corpo pesado ficar sobre o meu, e encaixa sua mandíbula envolvendo minha garganta, e desta vez sei que nada o fará parar, e enquanto ouço meus ossos sendo esmagados ainda tenho tempo de pensar que este é o cãozinho que num dia frio de chuva fina eu encontrei encolhido como uma bolinha, trêmulo, e protegi e amei... ele ergue meu corpo quase inerte, sacode e solta, e seus dentes estão cheios de sangue, e ele volta-se para a cadela e tenta cobri-la, desajeitado, e ela se assusta, e num instante, tentando mantê-la sob seu domínio quando ela parecia querer fugir, ele crava os dentes no seu pescoço e esmaga-a, jogando seu corpo inerte ao lado do meu... ele senta-se sobre as patas traseiras, com a enorme língua ensanguentada à mostra, ofegante, e fica longos minutos olhando meus últimos estertores... quando finalmente meu corpo fica imóvel, ele levanta-se e sai, naquele seu andar desajeitado... dali por diante esse cão enorme e brincalhão irá vagar raivoso e triste, cabisbaixo, pelas ruas do bairro, sentindo a minha falta, e irá parar de comer e de se interessar por outros cães ou mesmo de cadelas vadias, e irá definhar e morrer, para minha tristeza póstuma...

Um comentário:

CRF disse...

Se tivesse aparecido uma "carrocinha", como o perigo maior, o pobre cão vadio não teria sobrevivido
para sentir "tristeza póstuma"...
Será que ele teria sido mais feliz?
Ou, será que viver uma história que ele sabia qual seria o fim, valeu a pena?