domingo, 25 de novembro de 2007

Vida

Não sei se minha vida é vazia. Talvez seja cheia. Cheia de espaços. Provisória. Sem perceber claramente vou realizando uma história. Toda história é definitiva, antes de ser expressa. Tenho filhos, plantei árvores, escrevi livros. Vazia. Não gosto de ficar avaliando. Sempre tenho tanto a fazer, sinto-me sempre provisório mas em movimento. Um porto, outro porto, mais outro, nenhum é definitivo – só a minha história, porque passado. Imutável, antes. O passado engole o meu presente com a voracidade da minha pressa. Hoje vira ontem, ontem vira história, o amanhã vem aí sem pedir licença. Uma porra que alguém sabe exatamente o que lhe acontece!

Esse texto divide a minha vida em duas fases, o antes e o depois. Do texto. Que importância tem isso, gente? Antes do texto fiz um lanche. Antes e depois do lanche. Minha vida dividida por um mísero lanche. Nossas vidas são pequenos espaços entre, antes, depois, durante. Deveriam ser grandes projetos. Como se fossem obras a se construir. Planos.

Ainda bem que minha vida não é um projeto com começo, meio e fim. Seria chato como realizar um trabalho. Pensar na vida nos faz pensar em vazios, em projetos, nos faz olhar para trás. Prefiro ter sonhos, metas, ambições. Pequenas ambições. Meus sonhos são, agora, de médio e longo prazos. Aprendi que não adianta sonhar pouco, nem deixar que o sonho comande, gere estresse, decepcione. O segredo é sonhar com o possível, no prazo que dá para realizar. Mas, segredo maior ainda é aprender que dá para levar de muitas maneiras a vida neste espaço de tempo entre o sonho e a sua realização. Espaço de tempo. Levar a vida. O sonho está lá na frente. Ninguém disse que precisa ir voando. Relaxe.

Entre um sonho e outro, goze.

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Causos de Viagem

Saímos, eu e a minha amiga Else, com rumo mas sem destino. Iríamos até uma rodovia federal e daí pela primeira estrada que nos agradasse, dois dias para o sul e para o leste, e nos dois dias seguinte voltaríamos para o norte e para o oeste até encontrarmos novamente a rodovia. Não queríamos seguir roteiros.

Passamos por uma cidade onde eu conhecia algumas pessoas. Fomos convidados para um evento, uma palestra, sobre assunto que nos interessava. Fomos conferir. Estava no espírito do nosso passeio. Fiquei sentado com os meus conhecidos, Else foi sentar-se mais perto do lugar destinado aos oradores, o primeiro seria um político conhecido, nordestino. Contou-me depois:

“O homem é bonito, carismático. Falou o tempo todo olhando pra mim, sorrindo, flertando. Tem esse problema do sotaque do nordeste, que nele é fortíssimo, quase forçado, achei... No início mantive-me impassível mas depois pensei, e por que não? Passei a devolver-lhe os olhares e sorrisos. Estabeleceu-se um clima de claro interesse entre nós, acho que perceptível para os que estavam próximos. Tentei ser discreta o quanto pude. Veio o coffee-break, ao fim da sua palestra. Peguei um café e me afastei das mesas, notei que ele vinha em minha direção, fiquei curiosa, sabia que vinha me abordar. Não chegou muito perto. Quando viu que eu estava olhando, apenas fez um sinal com a mão e me disse: Ramo? Demorei um pouco a entender, e respondi meio na lata: Rou nada! Voltei correndo para a minha cadeira no salão e deixei-o lá, atônito.”.

Ainda rindo daquele caso tomamos a estrada novamente. Paramos no meio da tarde num restaurante à beira da estrada, bem simples. Havia um salão com mesas e ao lado uma espécie de varanda bem ventilada com redes. O cardápio era todo à base de carne de bode. Bode e aipim, que eles chamam no nordeste de macaxeira. Apreciamos um filé de bode, uma carne do sol de bode, um sarapatel de bode e uma viúva de bode, tudo acompanhado por macaxeira e molho de pimenta, tudo delicioso. De sobremesa, mangas doces como mel. Else olhava intrigada para o salão vazio, todo ornamentado com aquelas redes coloridas, e perguntou à moça que nos servia:

--- Mas, diga uma coisa, essas redes aí... o pessoal usa?

--- Olha, moça, vou lhe dizer: a pessoa vem pra cá, come bode, come bode, come bode. Come bode e come macaxeira. Depois ainda come manga e toma água. Aí, já com o bucho cheio, dêitia na rede e pêidia, pêidia, pêidia!...

Rimos até fazer a digestão. À noite chegamos num pequeno povoado onde encontramos um bar à beira do rio, com varandas cheias de mesas e grupos bebendo e cantando. Algumas pessoas jogavam sinuca, pareciam todos nativos. Pedimos cerveja, conversamos com a dona do bar que nos apresentou umas moças e uns rapazes que tocavam e cantavam, ficamos ali no grupo, mais observando que participando, apreciando a cervejinha gelada e a alegria do grupo. Um rapaz tirou uma moça para dançar. Em pouco tempo afastaram a mesa de sinuca e fizeram um salão de baile. Outros casais começaram a dançar e a coisa virou festa. A moça que dançava desde o começo voltou para a mesa:

--- Que cara chato! Queria de qualquer jeito me comer, onde já se viu?

A dona do bar, que observava a cena ao nosso lado, comentou, jocosa:

--- Bem se vê que essa inha é de fora. Onde já se viu, por aqui, uma moça dessa idade suvinar o periquito?

terça-feira, 20 de novembro de 2007

País de Merdas (exceto nós e os nossos, etc...)

Moro num País que é governado por mafiosos e corruptos. Um País que solta bandidos porque juízes, desembargadores e ministros são comprados, vendem sentenças, vendem as nossas vidas de cidadãos comuns. País onde as leis são feitas pelos representantes do mal, eles próprios bandidos, escondidos atrás da imunidade parlamentar. Um País de cordeiros, pobres cordeiros, de educação limitada pelos interesses dos que dominam, dos que exploram, dos que se elegem trocando votos por bolsas pagas com o nosso próprio dinheiro. Um País onde morrem inocentes todos os dias, num replay macabro, tombando nos mesmos lugares, alvejados pelos mesmos marginais que usufruem mais liberdade que o cidadão comum, porque compram a própria imunidade nas mãos dos que deveriam combatê-los. Um País que assiste, estupefato mas preguiçosamente, bandos de assaltantes ocupando o governo, drenando nossos recursos, enriquecendo descaradamente diante do nosso manso e distraído horror...

Neste País que vivo morreram ontem muitas pessoas. Duas dessas mortes ocuparam os noticiários da TV: um noivo, italiano, que comemorava o casamento próximo com alguns dias de férias no Rio de Janeiro; uma jovem, ex-noiva de um desequilibrado perigoso solto após seqüestrá-la já uma vez. Penso nos familiares, nas pessoas que os amavam, na impossibilidade de se entender e aceitar tragédias tão imensamente horrendas, no vazio que se segue, no sentimento de impotência, na dificuldade de se enxergar qualquer horizonte. Penso e choro, por estes e pelos tantos mais, enquanto rezo e rogo pela nossa sorte.

Chorar e escrever são nada diante da estatura dessas tragédias. Queria poder fazer algo mais. Queria ter mais fé, mais coragem, mais decisão. Ou morar num País que me respeitasse como cidadão, me desse segurança e coibisse a corrupção. Será que a melhor saída para isso tudo continua a ser o aeroporto do Galeão?

domingo, 11 de novembro de 2007

Transbordas...

Parecia coisa da sorte.

- Meu carro quebrou bem aqui na sua porta...

- Não tem problema! Já chamou alguém? Quer ligar para a oficina, para o reboque?

- Já liguei, obrigada...

- Vem, entra. Vamos tomar um refresco, uma água de coco...

Deixo-a seguir na minha frente. Que morena! Nos conhecemos da cidade, uma das meninas mais gostosas, mais bonitas, entre as que conheço. Uma vez trocamos olhares. Esses vestidos de tecido mole foram inventados para me matar, acho... E as sandálias de salto alto, deviam proibir! Meus hormônios se animam. É hoje! E veio assim, de graça!

- Senta um pouco, aceita uma água de coco geladinha?

- Ah, sim, obrigada.

Planejo rápido: primeiro, ficar sabendo se a moça está com alguém, que isso eu respeito; segundo, jogar todo o meu charme em elogios, poesias, papo sério ou papo bobo, e gentilezas, envolver para conquistar; terceiro, definir e tomar posse. De beijo na boca até amor selvagem, tudo à vista. Sirvo a água de coco e sento-me em sua frente.

- Continua linda...

- Obrigada (risos).

Pontadas de desejo já maltratam meu coração. A moça parece acessível, mas quem pode saber? Melhor tentar impressionar desde logo.

- Sabe, Sara, vc é realmente muito linda. Se de alma for parecida, se esse coraçãozinho tiver em doçura e nobreza a mesma perfeição do teu semblante, serás perfeita! Feliz, então, de quem mereça os teus carinhos. Esse alguém existe?

- Hem? Não entendi...

- Desculpe, perguntei se havia alguém atualmente merecendo seu interesse.

- Como assim?

- Uma mulher tão bonita, haverá porcerto alguém em sua vida. De pretendentes estou certo de que transbordas!

- Transbordas? Como assim?

- Sara, pelo amor de Deus...

- Você fala cadas coisas!

- Deixa eu ser mais direto: há alguém lhe comendo, agora?

- (Risos tipo encabulados)

- Entendeu o que eu quero saber, coisa linda?

- Há o Carlos, mas está viajando...

Do beijo ao amor selvagem em tantos minutos. A moça não é letrada mas tem o coraçãozinho nobre e gentil. Seu entusiasmo é transparente, seus gritos de, digamos, felicidade, foram ouvidos pelo caseiro, a 200 metros. Sua única curiosidade foi sobre a palavra transbordas. Quem disse que é necessário ter um vasto vocabulário pra ser uma boa pessoa? Pena que o defeito fosse apenas uma sujeira no combustível do seu carro e que o mecânico fosse tao rápido.

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

A Noiva

Primeiro houve o meu estranho encanto
pelo farfalhar das tuas núbias saias
meias, ceroulas, bambolês e anáguas
sob sedas prateadas, delicado manto

sussurros e carícias, de tecido macio
quando te vestem tuas mucamas novas
azáfama que tão serena suportas
sem um único suspiro ou sinal de fastio

Depois, minha paixão foi por outro objeto
e era ao teu silêncio todo o meu apreço
pois que nunca te ouvi o menor ruído
apesar de tanto tempo sob o mesmo teto

e depois mais ainda, pela tua figura
teu busto bem feito, teus suaves quadris
tuas pernas longas, tuas mãos tão bem feitas
tuas coxas roliças, tuas carnes tão duras...

E então me perdi, definitivo e completo
por estas tuas maneiras, assim tão sutis
por estes teus olhares, assim tão profundos
por este teu jeitinho, assim tão quieto

e me perdi também pelos teus tantos cabelos
os loiros, os pretos, os castanhos, os vermelhos
e por este teu corpo lindo, sem nenhum suor
e por esta tua pele sem cor, sem marcas, sem pelos...

E então, eu meio louco, numa cena atroz
após tanto adorar-te em tua brilhante redoma
não mais suportei ficar longe de ti
e quebrei com uma pedra a barreira entre nós.

Não mostrastes surpresa, nem elevastes tua voz
quando dentro da vitrine, enfim, me vi
num smoking de noivo, posando ao teu lado
te sussurrando ao ouvido, "enfim, sós!".

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Cão Vadio


Sou preto, alto e magro, elegante para um cachorro, mas vadio... estou habituado a andar por estas ruas deste bairro calmo que chamo de meu território... como cachorro, não tenho obrigação de saber-lhe o nome, nem das ruas, nem de nada, sou só cachorro, e vadio... um cão vadio... tenho minha sombra predileta sob um oitizeiro na praça onde estão a construir uma igreja, e ali fico deitado, com a minha enorme língua pendurada, a minha cabeça erguida, numa atenção despropositada, já descobri, acompanhando, sem razão, os mínimos movimentos dos passantes... minha vida é andar e fugir... pode parecer sem graça, uma vida assim, mas desta minha eu gosto... perambulo pelo bairro, à procura de restos de comida e de cheiro de cio... nada mais interessa a um cachorro, na verdade, somente comida e fêmeas no cio, exceto para os outros cães, os que têm dono... não que seja uma vida pacata e sem riscos, esta minha, pois que os garotos jogam pedras e me perseguem, às vezes... mas esse não é o maior perigo que enfrento... tampouco os adultos, que faço questão de ignorar, e que, quando me vêem, ou sentem um medo discreto (confesso que minha figura não é exatamente ameaçadora), ou me dispensam somente indiferença... perigo mesmo, que enfrento, são os enormes cães tratados a pão de ló, mal presos nas casas, tão ferozes e pesados, e que quando acham um jeito de escapulir, quando passo, me perseguem por todo o bairro, e não fosse exatamente porque são balofos da comida farta e boa que os donos lhes dão, e não fosse minha astúcia e minha rapidez, em vez de escapar como faço sempre sei lá o que seria de mim... por toda parte onde ando, ouço seus latidos agressivos, desesperados, destes cães magníficos, bem tratados, que espiam pelas grades e frestas dos enormes jardins... não é fácil achar comida revirando as latas de lixo desta parte rica do bairro, puro desperdício de tempo, mas de qualquer forma, por puro hábito, confiro-as... na parte pobre do bairro, porém, as mulheres jogam a comida nos passeios ou na rua, mas não no lixo, para que eu e os outros cães vadios tenhamos o que comer... e com a mesma generosidade que percebemos nestas pessoas desta parte pobre do bairro, que dividem o pouco que têm com quem não tem nada, nunca sequer rosnamos uns para os outros quando do mesmo naco somos vários a tentar se alimentar... nos finais de semana, porém, eu gosto das latas das casas ricas, pródigas em restos de carnes e gordura, pedaços de churrasco, acompanhamentos, ossos... no domingo, em especial, existem as pizzas e os restos de frango assado, restos de peixe, algum suflê ou salada, regalos que engulo rapidamente quando os acho, temeroso da ação dos vigias e do barulho que os cachorros das casas fazem ao me notar... gosto mesmo, porém, é quando sinto o cheiro de fêmea no cio, este perfume acre e antigo, que faz meu corpo preparar-se para as longas jornadas de cerco, e que diminui a importância de tudo o mais e faz sumir meu apetite colossal, e que sinto mesmo a quadras de distância, e que quando sinto me coloco em todo alerta e levanto meu focinho frio para o ar, atento a qualquer sinal de latidos de outros machos, e que sei exatamente de onde vem, se ando de um lado para o outro e percebo a variação da sua intensidade, e me faz deixar tudo para trás e seguir, no meu disfarce eterno e no meu passo ligeiro, orelhas murchas, tentando não chamar a atenção... e quando acho a fonte deste cheiro mágico, normalmente uma cadela presa em casa de grades e grandes portões, faço cara de sonso e me deito, deixo meu próprio cheiro espalhar-se e, se dou sorte e a cadela escapole, copulo com ela no meio da rua, e não me importo com as pedradas e os gritos, com a água fria e os impropérios, e quando encho a fêmea com meu sêmen farto sei que daí há algum tempo muitos filhos terei, já minha prole extensa e variada enche esta cidade em tantas das suas ruas, tantas vezes foi assim... nesta noite de chuva fria e fina quando a lama toma conta de tudo nas ruas de terra e as pessoas se recolhem e poucos carros passam por aqui, procuro o vão protegido do vento ao lado da igreja em construção, onde costumo me enroscar para dormir a salvo das crianças e de suas pedradas, quando farejo, mais do que vejo, uma pequena bola preta, trêmula, com o inconfundível cheiro de cachorro novo... perdido ou abandonado, é uma cãozinho com poucos dias de vida... talvez seja um filho meu, como irei saber? na dúvida, e porque tenho esse espírito generoso que une os necessitados, resolvo deitar-me ao seu lado, aquecendo-o com o meu corpo e protegendo-o como uma mãe... de tão pequeno, ele ainda não anda direito e eu tenho que trazer-lhe alimento e cuidar dele, e me afeiçôo, e faço-lhe cafuné e enfio meu focinho sob sua barriga para rolá-lo no chão, e ele rosna e gosta de brincar comigo... depois de algum tempo, muitos dias, tantos que eu perco facilmente a conta, não é da minha natureza contar os dias, ele vai-se tornando um cão troncudo e pesado como esses das casas ricas desta parte do bairro, mas bem humorado o pacífico como eu próprio lhe ensinei a ser... pouco tempo mais, e ele já me acompanha, grande e desajeitado, derrubando latas, aprontando correrias, e somos dois azougues impertinentes zoando absolutos pelas ruas deste nosso território... como me sinto remoçado com a sua companhia, com a sua alegria e sua disposição! quando ele pula sobre meu pescoço e quase crava seus dentes numa mordida carinhosa, sua maneira de começar uma brincadeira, e dispara como um foguete só para que eu o persiga, e eu dou um salto em sua direção e distendo meu corpo comprido e leve, e uso toda minha envergadura para, mal tocando o chão com as patas, aproximar-me rapidamente dele, e quando estou quase alcançando-o e ele dá uma inesperada guinada, um drible desconcertante, e eu passo por ele sem alcançá-lo e aprendo que ele já sabe mais recursos de escapagem que eu, e ele late alto e abana o rabo como que rindo de sua nova sabedoria, ou quando ele tenta uma manobra mais ousada e se atrapalha e rola pelo chão e eu o alcanço e ele rapidamente me subjuga com seu peso e sua agilidade, e num átimo está sobre meu corpo com suas poderosas mandíbulas encaixadas no meu pescoço, e eu fico quieto com uma pontinha de medo que, no calor, ele feche aquelas mandíbulas de aço e triture minha garganta, e aí eu sei, definitivamente que ele é melhor do que eu fui ou serei, e fico orgulhoso de tê-lo ensinado e ser, por assim dizer, o seu verdadeiro pai... e fico imóvel por muito tempo ainda, enquanto ele ofega sobre mim, até que ele se desinteresse em me manter sob seu jugo e parta, veloz, em outra corrida desabalada que nem sempre tenho forças ou ânimo para acompanhar... e agora sinto esse cheiro forte de cio e sei que ele também sente, e que agora ele é um cão adulto, e identifico a cadela que, a poucos metros de nós, estará ganindo e enfiando o focinho pelas frestas do portão, e sei que a cadela, sendo também tão vadia, fará como nas vezes anteriores e pulará sobre o muro baixo da casa e saltará para a rua, e de repente temo pelo que poderá ocorrer, mas esqueço, pois que o cheiro de cio me domina e me faz esquecer tudo o mais, e a cadela já na rua aproxima-se e cheira meu pelo e o do outro cão, e eu tento montá-la como tantas vezes fiz, e ele também, ao mesmo tempo, e eu rosno toda minha autoridade e experiência mas ele rosna e joga suas patas pesadas contra meu corpo, e a cadela se assusta e se afasta, e eu me vejo frente a frente com o temível oponente e me lanço ao ataque, esperando fazer valer mais minha pretensa autoridade de quase pai que a minha força, que sei insuficiente para enfrentá-lo, e ele, dominado como eu pelo cheiro do cio da vadia que a tudo assiste, mostra-me os dentes num arreganhar medonho e parte para o ataque, e em poucos segundos me domina e faz como tantas vezes seu corpo pesado ficar sobre o meu, e encaixa sua mandíbula envolvendo minha garganta, e desta vez sei que nada o fará parar, e enquanto ouço meus ossos sendo esmagados ainda tenho tempo de pensar que este é o cãozinho que num dia frio de chuva fina eu encontrei encolhido como uma bolinha, trêmulo, e protegi e amei... ele ergue meu corpo quase inerte, sacode e solta, e seus dentes estão cheios de sangue, e ele volta-se para a cadela e tenta cobri-la, desajeitado, e ela se assusta, e num instante, tentando mantê-la sob seu domínio quando ela parecia querer fugir, ele crava os dentes no seu pescoço e esmaga-a, jogando seu corpo inerte ao lado do meu... ele senta-se sobre as patas traseiras, com a enorme língua ensanguentada à mostra, ofegante, e fica longos minutos olhando meus últimos estertores... quando finalmente meu corpo fica imóvel, ele levanta-se e sai, naquele seu andar desajeitado... dali por diante esse cão enorme e brincalhão irá vagar raivoso e triste, cabisbaixo, pelas ruas do bairro, sentindo a minha falta, e irá parar de comer e de se interessar por outros cães ou mesmo de cadelas vadias, e irá definhar e morrer, para minha tristeza póstuma...

domingo, 4 de novembro de 2007

Guisado de Amor

Desmantelo, pendulo, saio do eixo
ao te ver novamente me encanto
e tão desassuntado me deixo
a imaginar, e sonho tanto...

Sonho que és malíssima fera
que as minhas entranhas devora
em boníssima e formosa senhora
que tal banquete de mim espera

Da casca sei que não fazes questão
mas sonho que me queres por dentro
fígado, rins, baço, pulmão,
fatiados e ao molho, com coentro

Ossos, veias, músculos, recheio,
queres tudo que sou pelo meio
com coentro, fatiado ou ao molho
to dou-me completo, não me escolho

Sonho que é bom, mesmo assim
ser devorado por ti, aos pouquinhos
teus dentes, delicados moinhos
os algozes do meu tão doce fim

Só que não me queres tomado
antes me queres doado e servido
em bandeja de prata, arrumado,
temperado, ao ponto e cozido

Em mestre-cuca então me vejo
a preparar-me em banquete
"Se é da rainha o desejo
pois que derrube-se o palacete!"

Meu coração, faço-o em pedaços
derreto-o em gotas, como cera
disponho-o em baixela de aço
misture-se ao molho madeira

Se mais me queres, mais to dou
de outras partes me desfaço
e tens mais, agora, do que sou
pulmão, estômago, fígado e baço

Com coentro e com o molho já dito
em fatias sirvo cada prato
regale-se a rainha, ao infinito
admire-se o tempero, o ponto exato
Mais ainda, porém, queres tu
já te dei esse estofo, de que sou feito
e deixei-me então, por dentro, nu
também vazio o outro peito

Embora oco de todo recheio
encontro-me ainda em boa figura
rodeado de partes, sem meio
como uma bela armadura

Se mais partes de mim ainda queres
dou-te mais, mas muito pouco
quase caibo em duas colheres
se ainda queres do oco...

Se porém te agradares de mim
dessoutra parte que me sobra
não levarás coisa ruim
nem to dou-me em pele de cobra

Mas tenhas pressa, quase já acabo
ainda tenho cá pernas e braços
dariam um bom guisado, com nabos
cortados em pequenos pedaços

A barriga, as orelhas e os pés
dou-te em prato bem salgado
uma feijoada, nota dez
ou um generoso refogado

Da cabeça, que convém bem limpar
os neurônios vão em boa moqueca
das orelhas, faz-se o caviar
os olhos vão bem em panquecas

Resta um só problema a resolver
é a sobremesa, para o final
com que servir, como fazer
inteiro ou em rodelas, o meu bilau

Acordo, enfim, desse devaneio
e já não estás, te perdi novamente
vivo e inteiro, capa e recheio
desmanchado de amor, sigo em frente...

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Um Pouco Louco

Quando penso em você,
e vejo que nosso amor é pouco mais que uma fraude,
sinto como se mariposas de veludo revirassem o meu estômago,
e o ar me falta, me escapa,
penso no que isso tem a ver com o notável escafandro,
e penso que um poeta faria uma escritura magnífica
sobre o nosso caso,
e fico com um medo terrível deste sonho me transformar
num louco de verdade...

Ah! Você nem imagina o que me faz sentir!

Se me lembro do seu sorriso e do brilho dos seus olhos,
é como se uma colméia passeasse sobre meu espinhaço,
é como se eu caminhasse sobre cascas de pêssegos,
é como se no meu peito houvesse, batendo asas,
um assanhaço,
é como se o mundo todo murmurasse em meus ouvidos,
cachoeiras azuis,
e sinto pena,
porque o poeta não sabe nada sobre nós dois...

Ah! Se você soubesse...!

Se recordo o seu caminhar, o balanço do seu corpo,
sinto um enorme desejo,
como se eu tivesse comido todas as jabuticabas do quintal,
e cada uma delas fosse um pedaço de você,
que eu quisesse comer,
e eu passasse pimenta malagueta e fogo sobre todo meu corpo,
e ardesse e ardesse,
acho mesmo que estou ficando meio doido por você...
Se pelo menos esse poeta viesse logo e me ouvisse...!

Ah! Você não conhece a metade...!

Quando penso em seus cabelos, seu cheiro, seu colo,
me enrolo todo e me deito,
tremo de desejo e paixão,
como um cão danado me vejo,
e tento arfar e balançar o rabo,
levantar as orelhas é uma performance que não consigo,
e penso, finalmente,
o que há de errado comigo?
De repente, como num castigo, me assombro
com a possibilidade de estar perdendo a razão...
E o merda do poeta que ainda não chegou?!

Ah! Se você pudesse sentir o que eu sinto...!

Esse barulho de sonrisal nos meus tímpanos,
quando penso em minhas mãos sobre seus fartos pentelhos,
essa sensação de ralar uma espiga de milho,
quando me recordo dos seus joelhos,
esse colibri voando dentro da minha cabeça,
quando quero tanto que você se me ofereça...
É como uma ópera de Bach, uma canção de ninar,
e eu queria falar de outra coisa,
antes que eu me esqueça,
cadê a porra do poeta que nunca chega?!

Ah! Se você tivesse ao menos uma idéia...!

De como esse chão sobe e desce à minha frente,
enquanto meu corpo intumesce,
penso vagamente que tenho uma coisa,
formosa, verde e dura, bem na medida que você merece,
e penso em sua bunda e em seus seios,
deliciosos morrotes com vales profundos nos meios,
e me preocupo se a coisa desce,
mas parecem infundados os meus receios,
é já me sinto enjoado só de pensar,
no filho da puta do poeta,
que eu chamo tanto e não me escuta!

Ah! Queria que você sentisse....!

Ouço um tropel e um apito, dentro do meu chapéu,
é um trem-de-ferro bonito, puxado por um corcel,
e tudo se torna tão claro,
tiro da gaveta um anel e um livro,
e sei que nesse carro que vai me atropelar,
estão você e o poeta...
Existe um magnífico altar,
aonde, numa cerimônia secreta,
iremos nos casar,
e você irá colocar, delicada e feliz,
o anel encantado, na ponta do meu nariz,
e o poeta descreverá, com meu pau fosforescente,
que lhe servirá como pena,
no livro do destino da gente,
nossa última e deliciosa cena...

Ah! Se você visse como tudo é bonito por aqui...!